quinta-feira, 26 de março de 2009

Sobre Perspectivas de Argumentação, do Jurídico e da Ação Política

Todo direito que existe no mundo foi alcançado através da luta; ... só se afirma através de uma disposição ininterrupta para a luta (Ihering, 1987, 15).

É certo que o mundo do direito – compreendido como o conjunto de normas e princípios ordenadores das interações sociais – é universo estranho às concepções exatas, categóricas, mais afeitas às ciências matemáticas. 

O direito, enquanto artefato social, ainda que produtor de normas – por suas características comumente vistas como rígidas, imutáveis, fixas – é, sobretudo, campo de forças em disputa. Constrói-se e modifica-se continuadamente, embora em tempos históricos distintos e incomensuráveis. Nesse sentido, abarca uma aparente antinomia. 

Composto de regras e princípios no interior dos quais as normas (que fixam condutas, direitos, prerrogativas e vedações) devem observar coerência, mostra um aspecto de permanência, provedor da segurança necessária às diversas formas de interação social. Produzido a partir de lutas entre distintas perspectivas (modos de visão, apreciação e ação), integra a possibilidade de transformação. 

Daí a decisiva função do advogado enquanto agente principal em seu constante e salutar aperfeiçoamento, no sentido de garantir o reconhecimento e a eficácia dos direitos de todos os integrantes da coletividade humana. É este profissional que, dominando o manejo dos princípios e normas estruturadores do sistema jurídico – nacional e até mesmo internacional – atuará na construção de argumentos sustentáveis, consistentes o bastante, de modo a garantir a consistência da luta em prol da conquista do convencimento dos distintos agentes detentores de posições capazes de viabilizar ou impedir a consagração – o reconhecimento – de determinada postulação jurídica (magistrados, ministros, parlamentares etc.). 

Magistrados, parlamentares, gestores públicos, agentes políticos e a sociedade em geral são, assim, levados a ponderar sobre reivindicações de agentes sociais, individuais ou coletivamente considerados, tornadas consistentes e fundamentadas no âmbito do ordenamento em vigor pela intervenção do advogado. Por intermédio do saber técnico do profissional do direito (que de modo algum pode ser reduzido a mero operador) as demandas de setores da sociedade são dotadas de consistência, adequadas e fundamentadas no interior do sistema jurídico e posteriormente apresentadas e defendidas nos diversos espaços sociais de legitimação (parlamento, cortes judiciárias etc). 

O advogado tem, portanto, função essencialmente protagonista no esforço de construção, reconhecimento e garantia da eficácia dos direitos. É através de seu saber profissional, composto de domínio técnico e, sobretudo, da consciência de sua dimensão política, que inúmeros direitos foram formulados juridicamente e conquistados ao longo da história da humanidade. É através de sua habilidade profissional e humanística (no sentido da consciência do alcance do seu papel) e de sua filiação à perspectiva progressista, compromissada com o bem coletivo, que os atores políticos integrantes dos movimentos sociais podem ver suas demandas apresentadas e, sobretudo, defendidas nos diversos espaços da luta. 

A característica primordial de seu ofício, portanto, é exercê-lo tendo nítida a idéia de disputa, de embate entre teses opostas que constitui o Direito. Espera-se que, junto a essa consciência, faça-se acompanhar energia positiva o suficiente para empreender a luta necessária. Afinal, advogar significa precisamente defender, promover, trabalhar por. Quando se consulta um advogado acerca de uma causa e este tem o entendimento contrário àquilo que seu cliente em potencial propõe, costuma-se o profissional expor a sua visão pessoal e abster-se de vir a tornar-se patrocinador daquele cliente, por total incompatibilidade. – O advogado não exerceria adequadamente o seu ofício ao advogar causa na qual não acredita. 

No entanto, também é de costume abster-se o dito profissional de, instado, manifestar-se publicamente, vez que atuaria na desacreditação da tese defendida por colega, com a qual não concorda, mas que deve respeito – quanto mais não seja porque não detém o dom da onisciência ou da premonição. Sobretudo em termos de movimentos políticos, é de costume, ao ser convidado a manifestar o seu entendimento pessoal, sendo ele próprio integrante do movimento ademais de advogado, defender e garantir a presença de colega que defenda ponto de vista oposto. Semelhante regra social é ainda mais exigível quando conhece pessoalmente aqueles que possuem entendimento divergente e junto com eles participou das discussões sobre a construção do processo judicial em debate desde o nascedouro. Garantida senão a presença, ao menos o convite válido à defesa de ponto de vista contrário, a argumentação, quando se proponha alcançar conclusões objetivamente construtivas, se desenvolverá no âmbito de uma discussão – e não de um debate, que apenas se ocupa de argumentos favoráveis a uma determinada tese ou entendimento.

Ao contrário desse, aquela modalidade argumentativa tem por característica precisamente a preocupação e o compromisso de seus partícipes em exibir e fundamentar com lisura todos os argumentos – favoráveis e contrários – às teses em exame. Na discussão, portanto, há o efetivo compromisso com a verdade – no sentido da melhor compreensão do tema – e não com o triunfo próprio pela desacreditação da tese oposta. Essa lisura na apresentação e defesa das teses deve ser garantida pela instituição promotora da discussão, regulamentando não apenas o tempo de uso da palavra, mas, sobretudo, a presença de defensores para as distintas teses existentes. Somente por meio da discussão, necessariamente garantida e mesmo estimulada a presença de vozes divergentes, é que será possível um adequado entendimento acerca de temas controvertidos, porém de relevância vital para todos os envolvidos. Nesse quadro, necessária a abstenção consciente da postura vista no debate, onde os envolvidos se vêem e se portam como combatentes. 

A argumentação, no contexto de uma discussão, implica não tratar o interlocutor como entrave a suplantar, nem como objeto a suprimir. Antes, como indivíduo semelhantemente dotado do direito à liberdade de juízo, excluído o emprego de violência, tipo afirmativas que imputem uma suposta incapacidade de leitura e assemelhadas. 

O compromisso com o diálogo é um ideal a ser perseguido pelos movimentos sociais: Englobar múltiplos atores e perspectivas no interior de um ambiente respeitoso e ético, com o comprometimento de todos à escuta desarmada é tarefa a ser assumida. Pois somente através do compromisso com o respeito à controvérsia e à alteridade pode-se construir um consenso eficaz. 

Afinal, movimentos sociais são, essencialmente, forças políticas em concertação por transformações sociais, via de regra no campo do jurídico – seja legislativo ou judiciário. Sua representatividade e legitimidade são medidas sobretudo por meio da amplitude da democratização dos meios de participação que contemple.

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