quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Mais Além do Ufanismo: O Rio como Melhor Destino Gay Mundial

A nossa ambiguidade característica, a nossa dupla moral, a rica variedade de valores e condutas, cotidianamente nos traz às faces toda a inconsistência de visões polarizadas, binárias, no velho padrão "ou isto ou aquilo", objeto de bela composição poética de nossa saudosa Cecília Meireles.

A multiplicidade de aspectos presentes no "real" nos desafia, construídos socialmente que fomos dentro do conceito "bom ou mau", "certo ou errado", a conseguirmos proceder percepções para além das formas duais, opositoras, tão reducionistas.

É verdade que temos a celebrar a eleição da Capital do Rio de Janeiro como melhor destino turístico para gays - o que incontestavelmente contribuirá para dinamizar nossa economia, aumentando o investimento público e a arrecadação tributária, a geração de postos de trabalho.

Para fazer com que o poder público e cada um de nós individual e coletivamente cada vez mais se esmere no cuidado com a nossa amada cidade; para fazer com que se revigore o orgulho, sem bairrismos, de todos que aqui vivem, trabalham, transitam, visitam, desenvolvendo a consciência de compromisso, de responsabilidade para com o seu cuidado geral - posto que patrimônio comum.

Ninguém no mundo pode dizer que esta cidade não é belíssima, apesar de nossos esforços tenazes no sentido de destruí-la - pelo descaso com o lixo, com os resíduos das cozinhas dos restaurantes; pelo desrespeito às regras de convivência social no trânsito e fora dele; pelo péssimo hábito que se institucionalizou de dar vazão às necessidades fisiológicas em espaços públicos.

Também é unânime a idéia de que a sua população é predominantemente alegre, descontraída, calorosa, receptiva.

Banhada pelo sol, pelo verde e pelo mar, com um centro histórico rico e seu entorno idem (quem já não visitou Santa Teresa, Morro da Conceição, Saúde?), é um lugar de todo aprazível para aquele que aqui vem de passeio, desconectado com as agruras comuns do cotidiano, longe dos bairros que não fazem parte do roteiro turístico.

Já o seu habitante, trabalhador e usuário dos serviços de lazer e cultura que não faça parte daquela parcela circunscrita aos bairros de maior nível econômico, embora inequivocamente concorde com o paradisíaco da querida cidade do Rio de Janeiro ("fevereiro e março"), sabe por experiência cotidiana, também de seus aspectos perversos.

Para o segmento de homossexuais (gays e lésbicas) e transexuais, a questão da possibilidade de convivência, ocupação e uso dos espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro em igualdade de condições com qualquer heterossexual, no tocante ao respeito aos seus direitos, é o tempo todo marcada pelos aspectos de classe, origem e posição social, gênero, estilo de identidade, raça/etnia, lidos através de inúmeros símbolos - vestimenta, corpo, postura física e outros acessórios de classificação e posicionamento, como a posse e modelo de veículo, endereço de residência, tipo (e quantidade) de cartões de crédito, modelo e funções do telefone móvel.

Assim, o que representa "a verdade" no padrão de comportamento, de "leitura do mundo" dos habitantes, transeuntes e comerciantes de bairros bem demarcados como tradicionalmente de interesse turístico, não é a mesma verificável em todos os outros bairros componentes da mesma cidade, notadamente no quesito orientação sexual e identidade/estilo de gênero.

Mesmo nos bairros consagrados como paradigmáticos em termos de convivência democrática, respeitosa para com as diversidades, vez por outra irrompe a notícia de práticas violentas, desqualificatórias, mesmo por parte de agentes do poder público.

Do mesmo modo, não raro se tem notícia de possibilidades efetivas de existência, de convívio harmonioso, integrativo, entre os segmentos antagonizados por conta da orientação sexual e da identidade/estilo de gênero em bairros fora do cuircuito "zona sul".

Sabemos que a democracia, tanto no convívio interpessoal quanto no funcionamento das instituições de Estado e da sociedade civil e seus agentes, é um processo de construção continuada, cotidiana, tenaz.

Processo que pressupõe a atenção, o compromisso com o seu fazer diário, em todos os aspectos do viver, pois que inexiste um ritmo "evolutivo" apriorístico ou assegurado.

E é justamente por isso que importa não nos embebedarmos demasiado em ufanismo, por conta da benfaseja eleição de nossa cidade do Rio de Janeiro (de todos que a amam e usufruem de suas possibilidades) como melhor destino gay mundial. Que saibamos comemorá-la sem que levitemos, os pés fora e acima do(s) outro(s) lado(s) da mesma cidade.

Que saibamos aproveitar essa eleição para revigorá-la, melhorando a qualidade de nossa infraestrutura turística, da qualidade e do profisisonalismo na prestação de serviços.

Que não apenas os turistas que aqui chegam pelas vias áreas e marítimas sejam objeto de cuidado, mas também aqueles que vem pela via rodoviária, muitos fazendo passagens por diversas cidades, em todas deixando seus recursos, contribuindo para a dinamização das economias locais.

Que os recursos públicos não sejam apenas direcionados para os tradicionais focos dos olhares da administração pública - que se integre as áreas degradadas, alvo de muito discurso, matérias na imprensa e pouca ação efetiva.

Que, para além da (benvinda) permanência dos turistas gays, a vida cotidiana de lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais seja pautada pelo respeito, notadamente nas atitudes de agentes do poder público - em suas três esferas e em seus três poderes, notadamente para com aqueles que menor potencial econômico e/ou cultural.

Que, sobretudo, revigore em nós, em cada um de nós, o exercício de nossa capacidade de exercer uma cidadania ativa:

fazendo-nos repensar nossas atitudes, comportamentos e valores presentes em nossas formas de interação social;

possibilitando que desenvolvamos um sentido de responsabilidade, de compromisso com o espaço urbano, com o mobiliário e os esquipamentos públicos, assumindo um papel ativo diante de práticas de vandalismo, cobrando do poder público e fiscalizando suas ações;

contribuindo na percepção da nossa responsabilidade diante do direito de votar, auxiliando a conscientização de sua importância e consequências.


Parabéns a todos do Rio.
Muito riso e muito siso.

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