domingo, 24 de janeiro de 2010

Denunciar, pra que?, por que?

Qual a justificativa de se defender como melhor decisão estratégica buscar as ongs LGBTs locais para, em caso de se sentir alvo de práticas desqualificatórias, agressivas, degradantes de sua dignidade pessoal, seja em ambientes comerciais, seja em instituições públicas, seja mesmo no ambiente de sua casa, entre os de sua família consanguínea, efetuar a denúncia nos órgãos competentes?

Nos encontramos em um período de profunda transformação cultural em nosso país. Depois de vinte e um anos de regime autoritário, ditatorial, no contexto de uma tradição nacional de caráter aristocrático, casuístico, tendencioso, onde as relações sociais se organizavam (e ainda se organizam) em torno do poder pessoal - próprio ou acessível através das redes de relações -, onde o respeito pelo outro, qualquer que seja esse outro, não fazia absolutamente parte do referencial no modo de se ver e estar no mundo, os esforços no sentido da promoção e efetivação da noção de que a dignidade pessoal de toda e qualquer pessoa tem que ser respeitada, da premissa de que a propriedade não tem valor ou proteção em si mesma, mas somente quando se encontre cumprindo sua função social, tendem a ser alvo de grandes resistências.

Assim, vivendo no interior desse cenário de uma luta sociohistórica, cada pessoa integrante de qualquer segmento vulnerabilizado (trabalhadores sem terra, sem teto, negros, nordestinos, mulheres, lgbts etc), no curso da tarefa histórica de fazer valer os seus direitos, o respeito à sua dignidade, à sua cidadania, precisa ter a compreensão da resistência oferecida por parte de pessoas, instituições e setores da sociedade apegados àquele modo tradicional de percepção das relações sociais, tanto entre cidadões, como entre cidadão e o Estado.

No curso desse processo de transformação cultural da sociedade - de patrimonialista, aristocrática, clientelista, autoritária, arbitrária, organizada em torno da troca de favores pessoais, para um cenário social baseado em valores como a universalidade e indivisibilidade dos direitos (a cidadania plena é para todos, indistinta e incondicionalmente), a fraternidade, a tolerância (o respeito à diferença), a democracia, o diálogo, a pacificação -, esses dois modos de compreender o mundo (as formas de estruturação das relações sociais, a concepção de Estado, da sociedade nacional e da propriedade) disputam o poder de convencimento do conjunto da sociedade. Cada qual a seu modo. Cada qual empregando suas formas de ação.

Numa sociedade tradicionalmente truculenta, arbitrária, violenta, a passagem para um modo de compreensão das relações sociais e institucionais baseadas nos valores democráticos, republicanos, não se dará de forma fácil e tranquila. Muito menos no tempo histórico, por exemplo, de nossos vizinhos da América Latina - dirão aquelas pessoas mais impacientes com as incongruências da nossa marcha histórica, que nos vem deixando encabulados frente aos avanços democráticos conquistados por inúmeros países nossos vizinhos.

Diante desse quadro é que parece sempre oportuno ressaltar o potencial de empoderamento contido em um simples gesto de se recorrer às ongs que se dedicam ao trabalho da defesa intransigente do reconhecimento dos direitos de gays, lésbicas, travestis, transexuais, transgêneros, bissexuais, intersexuais e, com o apoio delas, efetuar denúncia em casos de violência ou ameaça de violência homofóbica.

Sozinha, agredida, inferiorizada, com a subjetividade apequenada, pouca ou nenhuma chance tem a pessoa para fazer frente à cultura do arbítrio, da intimidação, da obstaculização do acesso aos serviços públicos garantidos pelo Estado.

Sabe-se bem os modos de desestímulo praticados por determinados tipos de agentes do Estado, que trabalham na lógica da obstaculização - pelas dificuldades que cria - à fruição das garantias jurídicas decorrentes do Estado de Direito.

Ao buscar apoio nas instituições da sociedade civil dedicadas especificamente a este trabalho de promoção, garantia, efetividade dos direitos do segmento populacional composto por lgbts, supera-se este estado de fragilidade (potencializada pelos efeitos físicos e psíquicos da agressão, pelo isolamento pessoal e pela pouca ou nenhuma experiência no trato com determinadas instituições do Estado) e o natural desconhecimento do "caminho das pedras" - os meios, as formas de fazer valer os seus direitos.

Através dessas entidades (as ongs lgbts) pode-se contar com pessoas capacitadas ao encaminhamento da questão em todos os seus aspectos, inclusive e principalmente no tocante à imperiosa necessidade do oferecimento da denúncia da agressão sofrida, junto aos órgãos competentes.

É através da denúncia que as leis conquistadas serão postas em ação, tornando-se efetivas, gerando efeitos práticos, contribuindo nesse processo de transformação de mentalidades.

Também por meio da denúncia, o Estado disporá de dados estatísticos dimensionadores da extensão e profundidade da violência homofóbica diariamente desferida sobre a população de cidadãos lésbicas, travestis, transexuais, gays e bissexuais. Será por meio desses índices que o Estado e os ativistas disporão de meios para a elaboração de políticas públicas visando o enfrentamento e a superação do problema da violência homofóbica.

Cada pessoa que deixa de efetuar a denúncia permite que fique sem registro um ato de violência, de desrespeito à Constituição, de desrespeito aos Acordos e tratados Internacionais, e às leis nacionais; permite que os órgãos do Estado que o movimento lgbt conquistou para cuidarem desse importante problema deixem de dar o enfrentamento justo e necessário à violação da ordem jurídica nacional. Em resumo, termina sendo cúmplice na permanência desse estado de coisas.

A cada violência deixada sem denúncia, sem registro, sem apuração, a luta pela observância (efetividade) dos direitos humanos nno país (e não apenas do segmento lgbt) é enfraquecida. E, pior, fortalece-se, por esta omissão, as mentalidades que apostam na manutenção da ordem social constituída sobre valores de intolerância, desrespeito, arbítrio.

Portanto, a decisão de formular a denúncia da agressão sofrida, com o apoio das ongs lgbts preferencialmente, envolve um compromisso não apenas com a dignidade própria mas, também, com a luta que é de todas as pessoas engajadas na construção de um Brasil verdadeiramente respeitoso, ético, solidário, republicano, laico, democrático.


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