quinta-feira, 28 de julho de 2011

Mais do que as leis, decisões judiciais mudam a sociedade

Dando seguimento ao convite à reflexão e ao debate, remeto para o excelente artigo de Rodrigo Haidar, publicado no Consultor Jurídico em
14 outubro 2006

A mão da Justiça
Mais do que as leis, decisões judiciais mudam a sociedade
Um grupo de criminosos planeja um seqüestro. No meio da reunião para discutir os detalhes da operação, o chefão avisa: “Queria advertir os nobres colegas que a pena máxima de prisão para seqüestro aumentou de oito para 20 anos”. Um a um, os colegas respondem: “Se é assim, estou fora dessa”. A sessão se encerra, voltam todos para casa aterrorizados com os rigores da nova lei, um crime brutal deixa de ser cometido e em pouco tempo os índices de criminalidade desabam.

A improvável cena, montada pela imaginação de um reconhecido criminalista, ilustra à perfeição a impossibilidade prática de querer modificar a realidade com a simples edição de leis. E remete à idéia de que o contrário disso é muito mais verdadeiro do que pode parecer. Não são as leis que mudam a realidade. É a realidade que muda as leis.

Em seu trabalho de interpretar a legislação e a Constituição Federal — que atende também pelo nome de hermenêutica jurídica — juízes e tribunais relevam-se responsáveis pelas maiores transformações sociais dos últimos anos. “A atividade dos tribunais é uma importante fonte criadora do direito. O juiz não se limita a aplicar o direito existente, mas é muitas vezes co-participante do processo de criação do direito. E faz isso por meio da interpretação”, afirma o constitucionalista Luís Roberto Barroso.

São fartos os exemplos da influência da Justiça nas mudanças sociais. O mais recente se deu nas eleições de 1º de outubro [de 2006], quando o Tribunal Superior Eleitoral impediu a candidatura de um punhado de maus administradores públicos.

Até estas eleições, funcionava assim: o prefeito ou governador geria mal — ou assaltava — os cofres públicos. Condenado pelos tribunais de contas, tinha os direitos políticos suspensos. Na teoria, a Justiça estava feita. Na prática, bastava ao mau político entrar com um processo contra a condenação administrativa para recuperar seus direitos e se candidatar a qualquer cargo eletivo.

Isso mudou. O TSE reinterpretou suas decisões e acabou com a farra. Num julgamento capitaneado pelo ministro Cesar Asfor Rocha, a Corte Eleitoral decidiu que para garantir o registro da candidatura, o candidato tem de obter a suspensão da decisão administrativa na Justiça Comum ou a Justiça Eleitoral tem de reconhecer a idoneidade da ação que contesta a decisão do tribunal de contas.

A virada se deu no julgamento da candidatura a deputado estadual de Elizeu Alves, ex-prefeito de São Luiz do Anauá (RR). Alves (PP) teve as contas rejeitadas em agosto de 2003 e novamente em dezembro de 2004, mas só contestou a decisão do Tribunal de Contas Estadual em 4 de julho deste ano — um dia antes do término do prazo legal para requerer o registro de sua candidatura.

Ficou claro que a intenção de Alves era apenas concorrer às eleições, não discutir sua suposta inocência. Mas o candidato dançou, e fez bailar ao som da música da renovação mais um punhado de maus políticos que até então se aproveitavam desta regra.

Tratamento da Aids
A permissão legal para que doentes de Aids ou trabalhadores com dependentes soropositivos saquem o Fundo de Garantia para tratamento, por exemplo, só nasceu depois de seguidas decisões judiciais determinando que eles pudessem dispor desse dinheiro.

Em outubro de 1998, uma sentença pioneira do juiz federal Maurício Kato, de São Paulo, obrigou a Caixa Econômica Federal a liberar os recursos do FGTS de pessoa empregada e em perfeito estado de saúde para custear o tratamento de dependente, portador do vírus da Aids. Até então, admitia-se a liberação do dinheiro apenas para quem tinha a doença, não para seus tutores. Neste caso, uma trabalhadora pediu na Justiça a liberação do seu Fundo de Garantia para custear o tratamento do irmão.

O juiz Kato classificou como “absolutamente irrelevante” o fato de a lei do FGTS não mencionar expressamente a figura do dependente aidético como condição para o saque do FGTS. E lembrou que o papel do juiz, na aplicação da lei, deve ser o de atender “aos fins sociais a que ela se dirige e à exigência do bem comum”.
 

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