sábado, 21 de janeiro de 2012

O Direito e a tutela religiosa

Entre a efetividade do direito e a tutela religiosa: 
- Disputas de poder que persistem e se renovam


A Revista Fórum desse janeiro, ainda nas bancas, traz um artigo de  Túlio Vianna, professor da Faculdade de Direito da UFMG, onde discute a persistência da tutela religiosa sobre o mais básico dos direitos - o da liberdade sobre o próprio corpo, segundo ele, o núcleo elementar do direito à  liberdade (autodeterminação). Tutela historicamente sempre executada por meio da da retórica em torno da suposta proteção à coletividade.

Túlio Vianna demonstra, como já o fizera o Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da ADPF 132, que num regime democrático sustentado pelo primado do Direito não é possível se legislar sobre as liberdades individuais a partir da moral da maioria, se o bem em questão não é capaz de produzir dano a outrem.

Democracia é, antes de tudo, o respeito às minorias. A única possibilidade de cerceamento dos direitos individuais é quando o seu exercício produz dano ao direito de outrem, já o disseram não apenas Túlio Vianna e os Ministros do Supremo Tribunal Federal, mas todos os juristas de nações forjadas sob a cultura dos Direitos Humanos e do Constitucionalismo.

Entretanto, em que pese tão elementar postulado, embora ínfimo numericamente, o bloco teocrático (católicos e evangélicos), através dos tempos e na atualidade mais revigorado do que por exemplo nos idos da década de 1980, quando vivíamos o contexto da redemocratização nacional, tem conduzido uma luta sem tréguas com vistas à teocratização do estado, sempre tendo por objetivo o cerceamento das liberdades individuais, sobretudo a liberdade para dispor do próprio corpo - nele incluído o exercício da sexualidade consentida entre adultos.

No passado já se puniu até mesmo a fornicação, entendida como o relacionamento sexual por pessoa solteira. A sodomia [qualquer prática sexual diferente do "papai-mamãe"] foi considerada crime no estado do Texas até 2003, quando a decisão da Suprema Corte estadunidense no caso Lawrence v. Texas a considerou inconstitucional. Detalhe: decisão por maioria de 6 a 3.
No Brasil, ainda hoje, pelo código penal em vigor, se um garoto de 13 anos mantiver relação sexual consensual com uma mulher maior de 18 anos (uma prostituta, por exemplo), ela poderá ser condenada a uma pena que varia de 8 a 15 anos (art. 217-A, CP). [...]
Não bastasse a lei conservadora, os tribunais tendem a ser bastante moralistas na aplicação do Direito quando as questões versam sobre práticas sexuais minoritárias (Túlio Vianna, revista Fórum, janeiro, 2012, p. 18).
 Fortalecido à custa da miséria, desemprego e desamparo social das populações trabalhadoras, mas igualmente pela via da política fisiológica, que tanta concessão de estações de rádio e canais de televisão outorgou em troca de favores políticos e econômicos, o bloco religioso obscurantista nos dias que correm faz ouvidos moucos aos princípios norteadores da democracia e da república (laicidade e liberdade), chegando mesmo a reinterpretá-los e desqualificá-los, buscando a ferro e fogo impor sua visão de mundo ao conjunto da sociedade, inclusive àqueles que não professam o mesmo ou nenhum credo.

E, numa verdadeira cruzada religiosa renovada, elegeu mais uma vez a sexualidade alheia como campo prioritário de suas ações estratégicas, com vistas à implementação de seu projeto de poder. Sexualidades que não se encaixem no seu padrão reprodutor e em sua visão de mundo são alvo de ações consertadas, levadas a cabo por inúmeros parlamentares religiosos espalhados pelas incontáveis casas legislativas municipais, estaduais e federal. Também políticas públicas de prevenção às Doenças Sexualmente Transmissíveis tem sido alvo de constantes ataques. Para dar ainda mais sistematicidade ao seu projeto de poder, investem maciçamente na implantação do ensino religioso obrigatório nas escolas públicas.

Numa nação com a dimensão da nossa, desgraçadamente ainda marcada pelos baixíssimos índices de educação, ostentando a revoltante taxa de 20,3% de analfabetos funcionais na população de 15 ou mais anos de idade (14,1 milhões de brasileiros, segundo a última Pesquina Nacional por Amostra de Domicilios, a PNAD de 2009, divulgada em 2010), sem tradição de espaços coletivos de participação e formação sociopolítica; por longas décadas submetida às sucessivas crises econômicas e suas ondas de desemprego; com a educação pública batendo os mais baixos níveis de qualidade; os professores dos níveis fundamentais desprestigiados, mal pagos, sem perspectiva de ascensão salarial, torna-se ainda mais fácil essa manipulação obscurantista.


De nada adianta lutarmos pela erradicação da miséria econômica e social se, junto, não lutarmos contra a miséria cultural, terreno fertilíssimo às manipulações políticas e ideológicas.

Este é um ano eleitoral. A população elejerá, mais uma vez sem dispor de mecanismos confiáveis de informação consistente sobre as propostas e visões de mundo dos candidatos,  vereadores e prefeitos para os 5.565 municípios brasileiros, conforme dados do IBGE estimados para 1º de julho de 2011

É imperioso que as forças progressistas deste país, comprometidas com o estado democrático e republicano, se aliem, organizando um Frente Ampla em Defesa do Estado Constitucional, como se fez quando da luta pela redemocratização. Do contrário, seguiremos contabilizando o continuado avanço dessas forças teocráticas e obscurantistas.

Trecho de No caminho com Maiakóvski

Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

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