terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Sair do armário é um ato político

O título desta postagem é uma antiga frase de protesto do movimento gay internacional. Ela procura chamar atenção para o fato de que não ocultar a própria orientação homossexual constitui uma ação política.

Remete aos movimentos dos anos 60 do século passado, pois parte da consciência de que as atitudes pessoais, equivocadamente vistas como privadas são, na realidade, ações políticas. Naquele período, essa noção era veiculada através da máxima "O pessoal é político". 

Remete, igualmente, ao movimento gay estadunidense e sua campanha para que os e as homossexuais assumissem publicamente sua orientação sexual, como estratégia de combate ao processo de desqualificação e discriminação que rotineiramente eram (e ainda são) submetidos gays e lésbicas e travestis (também transexuais). 

O Movimento LGBT brasileiro importou essa ideia, embora devido às características historico-culturais de nosso país, não tenha ganhado muita adesão. É que, como sabemos, nossa sociedade nacional não prima muito por atitudes firmes, afirmativas, preferindo muito mais comportamentos digamos, mineiros; isto é, flexíveis, adaptativos, miméticos - apresentando-se como portador/a das características exigídas por cada contexto.

Em razão dessa característica é que nossas personalidades públicas nacionais portadoras de orientação homossexual  tem se prestado ao papel tradicional de não apenas não afirmar publicamente a realidade de sua forma de desejo, mas, sobretudo, de negar peremptoriamente que sejam homoafetivos, ainda que a torcida do flamengo e do coríntians juntas saibam qual seja a realidade sob tanta hipocrisia. Isso é verificado sobretudo entre cantores/as, pois entre os atores muitos tem dado a conhecer sua orientação homossexual, sem problemas.

Esse tipo de prática de dissimulação e negação apenas realimenta o preconceito. Ao nos ocultarmos através da negação ou dos não ditos, da dissimulação, de frases construídas na primeira pessoa do singular quando na realidade compomos com nosso/a parceiro/a uma conjugalidade que, acaso heterossexual, levaria com a maior tranquilidade a frase para o 1ª pessoa do plural, estamos em verdade nos curvando e fortalecendo (pela realimentação) a representação das homossexualidades como se fora uma forma de desejo afetivossexual inferior, desqualificada, imoral. De tão vil, precisa ser ocultado, suprimido, disfarçado, negado.

Entretanto, o mundo mudou e o Brasil - embora discordem muitos/as obscurantistas - mudou também. Diversas são as situações em que na atualidade podemos, sem risco à nossa integridade ou de nosso/a parceiro/a, lidar com a nossa orientação sexual com mesma naturalidade que os heterossexuais. 

Mas, de tão atemorizados pelo sempre presente fantasma da rejeição e segregação (que tão bem conhecemos), optamos - muitas vezes de forma inconsciente, automática - pela dissimulação e/ou pela negação.

Recordo um exemplo que me é muito próximo. Ou melhor, dois, dois exemplos. O primeiro, uma conhecida lésbica que vive junto com a sua parceira e a sua filha adotiva. Muito comunicativa e popular, ela possui muitos conhecidos entre seus vizinhos de condomínio, frequentando os eventos coletivos e constantemente organizando almoços e celebrações de natalícios. Mesmo quando os eventos são em sua casa, convida sempre algum/a vizinho/a. Essa moça minha conhecida poderia com toda a tranquilidade do mundo substituir as frases que constroi na primeira pessoa do singular (eu), por frases que trouxessem a sua companheira (que todos conhecem e igualmente convivem e respeitam, inclusive participando das assembléias do condomínio) ao lugar que efetivamente ocupa, ou seja, de sua cônjuge, já que ela lhe auxilia na resolução de todos os problemas pessoais, inclusive os relacionados com a educação da criança. Além do mais, todos que vão à sua casa constatam a cama de casal no quarto onde ambas dormem, fora o fato de a sua filha adotiva chamar a sua companheira de Mãe Fulana, enquanto que a ela chama simplesmente de mãe. Ou seja, nesse contexto de vizinhança, todos que com elas se relacionam intuem, inferem que elas formam um casal, uma família homoafetiva. E todos a respeitam. Nesse ambiente, não há efetivamente nada - a não ser o seu medo introjetado - que lhe impeça de agir com naturalidade e fazer referência à sua companheira, colocando as frases na primeira pessoa do plural (nós). Ao persistir nessa supressão tola e desnecessária, essa minha conhecida apenas fortalece o estigma e desrespeita a sua companheira - que fica aos olhos dos demais quase como um ser inexistente, porque embora esteja ali, desempenhe de fato o papel de companheira, jamais é referida como tal.

O outro exemplo diz respeito a um outro colega que embora viva uma conjugalidade de mais de 15 anos com o seu parceiro, ainda se presta ao papel do finge que esconde que eu finjo que não sei. Toda vez que algum consanguíneo do companheiro vai visitar a casa, ele se retira como um clandestino. Como se não bastasse viver a vida íntima sob essa humilhação, quando saem de férias não tem coragem de solicitar um quarto de casal. Embora estejam fora de sua cidade natal, com remotíssimas probabilidades de encontrar alguem, por exemplo, do trabalho... 

Essas duas conjugalidades citadas são compostas por pessoas adultas, na faixa dos quarenta e  cinquenta anos de idade e autossuficientes economicamente. Entretanto, nenhum deles foi ainda capaz de resolver a homofobia internalizada. No segundo exemplo citado, eles sequer conseguem conversar entre si sobre isto; não são capazes de tocar no assunto. - No primeiro, eu não sei, mas imagino que se dê da mesma forma. 

(E lembro ainda um terceiro caso, de duas lésbicas, que moram juntas há bem duas décadas e ainda se prestam a esses mesmos estratagemas. Se submetem ao ridículo de inclusive viverem em um mesmo quarto, porém com camas... SEPARADAS. - Isso mesmo! E o outro quarto, igualmente, possui cama de solteiro. Quando recebem algum familiar - que moram em outros estados, tanto da família de uma como de outra -, encenam o disfarce estruturado. Sobre a extensão dos direitos trabalhistas e previdenciários, uma delas não suporta que a outra toque no assunto, reagindo sempre com lacônicas e evasivas...)

Eu poderia citar  outros tantos exemplos mais. Mas fico com esses, que me parecem eloquentes o suficiente. Eles trazem a dolorosa realidade a que são submetidas as pessoas cujo único motivo para esses processos de estigmatização é a direção de seu desejo afetivossexual. 

Por não conseguirem se aceitar com naturalidade, por não conseguirem perceber o quanto estão se reprimindo - com danos concretos à plena vivência de sua conjugalidade -, não são capazes de superar o medo de serem segregados, desqualificados, apontados, alvo de atitudes preconceituosas. 

E por se manterem reproduzindo essa lógica hipócrita e preconceituosa, estão igualmente contribuindo para retardar o pleno e integral reconhecimento dessa forma de afeto e desejo como simplesmente uma outra modalidade de expressão de nossa afetividade e erotismo.

Por isso que "sair do armário é um ato político". Porque a primeira revolução precisa ser realizada dentro de cada um de nós - no sentido de nos respeitarmos, reconhecermos, nos tratarmos e nos conduzirmos com dignidade, não participando desse ignóbil joguinho do "finge que disfarça, que eu finjo que não sei".

- Façamos deste um ano realmente novo! Não há nada de intrinsecamente mau, imoral, aviltante em ser homossexual, travesti ou transexual. Todos nós temos o direito a uma vida digna.

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