domingo, 18 de março de 2012

Grupos religiosos não podem apropriar-se do aparelho estatal

João Luiz Coelho da Rocha, advogado especialista em direito societário e tributário e professor de Direito Comercial da Universidade Católica Romana do Rio de Janeiro (PUC-RJ), em texto publicado na Conjur em 14 último, critica artigo do ministro José Celso de Mello Filho, do STF, publicado na mesma Conjur.

No esforço de censurar a decisão do Tribunal do Rio Grande do Sul que, provocado, mandara retirar crucifixos de suas instalações, e o raciocínio desenvolvido pelo Ministro Celso Mello que defendera o acerto da decisão, o professor Rocha desenvolve uma lógica argumentativa bastante peculiar.

Acusando o texto do Ministro de omitir supostos valores das religiões cristãs e a sua influência – notadamente a católica – para a formação do povo brasileiro, João Luiz acusa todos aqueles que defendem o secularismo de “desprezarem os componentes básicos” da “maioria esmagadora do povo”.

Na disputa pelo convencimento, pressupõe nos encontremos num estado católico:  Coelho da Rocha imputa a defesa do aborto como um “pecado mortal” inerente a todos aqueles que defendem a ética republicana e afirma a existência cíclica, no Tribunal do Rio Grande do Sul, de “fenômenos esquisitos e irracionais, além de lógica e eticamente duvidosos, como a triste Justiça Alternativa e seus fundamentos deletérios”.

Em outras palavras, como sói acontecer entre aqueles movidos pela fé e não pela racionalidade científica, João Luiz atribui valor de verdade universal a mero ponto de vista – a sua pessoal opinião a respeito do direito ao aborto e do Movimento Crítico do Direito, por ele pejorativamente referido apenas como “Justiça Alternativa”.

Por meio da argumentação desenvolvida, constata-se que Coelho da Rocha deseja impor precisamente aquilo que o princípio da laicidade veda e que Celso Mello com bastante clareza e didática explicitara:
“grupos religiosos não podem apropriar-se do aparelho estatal, transformando o Estado em refém de princípios teológicos, em ordem a conformar e a condicionar, à luz desses mesmos postulados, a formação da vontade oficial nas diversas instâncias de poder.”

Ora, como qualquer indivíduo que não esteja movido por razões confessionais pode constatar, na observância da laicidade não há que se perquirir sobre os valores norteadores dessa ou daquela religião ou o número de fiéis que possua ou não.

Há isto sim que se garantir por todos os meios – inclusive os simbólicos – que o Estado não seja forçado ou induzido a se submeter a valores e princípios de caráter religioso – seja de qual religião seja, tenha quantos seguidores tenha - 190.732.690 de pessoas ou quatro.

Dito de outra forma, a “vontade oficial”, manifesta nas distintas esferas de atuação do Estado, não pode jamais ser pautada pela perspectiva religiosa de ver o mundo.

Não se cuida, portanto, de discutir acerca da cumplicidade da empresa católica Companhia de Jesus com o projeto de aniquilação dos povos originários; com a escravização dos africanos; e com a expropriação das riquezas naturais dos territórios saqueados – Brasil e demais colônias do Novo Mundo.

Nada que se falar sobre a histórica aliança entre a Santa Madre Igreja Romana e os senhores poderosos – feudais, de terra e de escravizados;

nenhuma discussão a respeito dos séculos de Tribunal Inquisitorial e suas torturas físicas abomináveis; nada também a respeito dos Borgia.

Nenhuma argumentação a respeito das sempre negadas e ocultadas denúncias de abusos sexuais praticados por padres católicos através da história, nos mais diferentes países;

nem uma palavra precisa ser dita sobre a histórica fome de riquezas e poder político sempre demonstrada pela Igreja Católica e, nas últimas décadas, também pelas ditas neopentecostais.

Para que se faça valer o que diz a Constituição Republicana no que concerne à separação entre religião e Estado, nada precisa ser debatido a respeito da deturpação dos ensinamentos do Cristo Jesus.

Nada disso é preciso. Para que se garanta a laicidade, nenhuma religião precisa ser questionada, criticada ou defendida.

Precisamente em respeito a elas é que todas devem se manter em seus estritos limites, que são os da esfera íntima do ser; aqueles formados pela fé e não pela racionalidade.

Daí ser absolutamente inconsistente toda e qualquer linha argumentativa tendente a se debruçar sobre os valores que praticam ou o número de seus fiéis.

De forma semelhante, no que se refere ao direito ao aborto, o que há que se discutir são as implicações dessas práticas clandestinas em termos de saúde pública e não a noção religiosa de pecado.

Quanto aos valores que fizeram surgir o movimento crítico do direito, poder-se-ia argumentar que seriam semelhantes àqueles pregados pelo Cristo: dar a cada um o que é seu; buscar garantir o direito à terra, a comer e beber a todos aqueles que se fatigam com o seu trabalho.

No entanto, não é disso que se trata. 

Trata-se simplesmente de manter cada esfera do humano em seu devido lugar: o espaço cívico não se confunde com o teológico.

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