quarta-feira, 23 de maio de 2012

Da incapacidade de discernir ou A cotidiana banalidade do mal

O advogado Thiago Vianna publicou em seu blog Comendo o fruto proibido postagem abordando a enorme capacidade da maioria dos mortais para se deixar influenciar pela televisão.

Thiago mencionou matéria da BBC sobre um documentário produzido pela televisão francesa intitulado jogo da morte - na realidade um experimento no qual se buscava demonstrar a capacidade de influência da televisão e a pouca capacidade do público para resistir a figuras de autoridade, a vozes de comando.

O "jogo" consistia em aplicar choques elétricos em voltagens inclusive fatais, caso o participante respondesse errado às perguntas. Eram 80 os participantes. Desses, 64 não somente aplicaram o choque, como infligiram a voltagem fatal de 460 volts, ainda quando a "vítima" implorava que parasse, permanecesse em silêncio ou uivasse de dores lancinantes. Não sabiam que tratava-se de encenação para um experimento. Acreditavam ser real.

O produtor do documentário-experimento destaca que esse resultado se aproxima ao encontrado em outra experiência semelhante, desenvolvida na década de 1960 pelo Psicólogo Stanley Milgran, na Universidade de Yale. Nesta, 62% das pessoas obedeceram essas ordens vis. No cenário da televisão, é de 80%”.

Vianna também relatou um caso ocorrido em Manaus, onde um apresentador de televisão tanto se esmerou na exibição de crimes bárbaros, com todos os seus detalhes e imagens mais bizarros, que terminou por se eleger deputado federal com votação máxima por três mandatos consecutivos.

Após denúncia de um seu ex-segurança de que - talvez para garantir a continuidade de "matéria prima" -, o apresentador televisivo encomendava os crimes para os exibir em seu programa, foi instaurado o inquérito penal.

As investigações policiais apuraram que o apresentador tão referendado pelos eleitores, indicando-o reiteradas vezes para a Câmara Federal, entre vários outros crimes praticados, também estava o de formação de quadrilha.

O detalhe da mesma é, ademais do número de seus participantes (15), a "qualidade" de alguns deles: seu próprio filho; um coronel; alguns policiais; um prefeito; um vereador e - até - um promotor de justiça.


O texto de Thiago não informa o ano em que esse caso de Manaus ocorreu. A página do Portal Amazonia.com não abriu. Mas isso não é de grande relevância para o que quero abordar aqui. Vianna conclui com um excerto de Vargas Llosa, destacando a cumplicidade do público para com esse tipo de programa televisivo, na medida em que garante grande audiência, levando os proprietários das emissoras a investirem nesse tipo de programação. O que, por sua vez, termina por corroer os valores humanísticos da sociedade. Eu quero abordar outro aspecto daquelas mesmas experiências que ele cita.

A experiência realizada por Stanley Milgran demonstrou a baixíssima capacidade do comum dos humanos para resistir a vozes de comando e a figuras de autoridade. O mesmo foi demonstrado pelo documentário-experimento da televisão francesa, concluindo o seu produtor que o maior índice de adesão apresentado se devia ao fato do potencial influenciador do meio televisivo.


A mim interessa abordar precisamente essa pouca capacidade demonstrada por muitos de nós humanos em resistir a ordens aéticas ou ilegais, sobretudo quando emitidas por figuras de autoridade e em tom ostensivo ou implicitamente ameaçador.

Hannah Arendt é a pensadora que se debruça sobre essa questão. Ela o faz ao cobrir o julgamento do funcionário do estado nazista encarregado de dar cumprimento as ações burocráticas necessárias à operacionalização da chamada solução final - o holocausto nas câmaras de gás dos prisioneiros mantidos nos campos de concentração.

O livro é Eichmann em Jerusalém. Nele ela aborda a destituição, pelo funcionário Adolf Eichmann, de sua capacidade para realizar o julgamento crítico a respeito das consequências de suas ações.

Imaginado como alguém cruel e sanguinário, o que se vê a partir de seus depoimentos ao tribunal é um burocrata perigosamente comum: cumpridor de suas funções com primorosa exação, cioso de seus deveres, Eichmann "só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe ordenavam" (p. 37).

Diante da ostensiva constatação do quanto ele, Adolf Eichmann, se mostrava incapaz de assumir as suas responsabilidades pelas ordens que dera cumprimento, Hannah Arendt cunha a expressão a banalidade do mal

Ela a usa para se referir precisamente a essa banalidade - porque amiúde, contumaz, corriqueira - com que muitos de nós, humanos e mesmo cristãos devotados, nos permitimos cumprir o mesmo papel desempenhado por aquele funcionário a um tempo nazista e comum: cioso de suas tarefas, de seus deveres funcionais, mas absolutamente incapaz de ponderar sobre as implicações concretas dessa obediência. 

A questão central, como Arendt magistralmente emoldurou ao final, trata-se de

"que os seres humanos sejam capazes de diferenciar o certo do errado mesmo quando tudo o que tem para guiá-los seja apenas seu próprio juízo, que, além do mais, pode estar inteiramente em conflito com o que eles devem considerar como opinião unânime de todos a sua volta" (p. 318).

Em Responsabilidade e Julgamento, Hannah Arendt retoma e aprofunda suas reflexões sobre o mesmo fenômeno: 

A frequência com que as pessoas renunciam sem maiores preocupações a proceder ao autoexame a respeito de suas atitudes e o dever que todo humano tem de exercer o juízo, a apreciação crítica sobre as suas ações e omissões. 

O não exercício da capacidade crítica que todos devem possuir e exercer sem descanso sobre suas próprias ações; o discernimento pessoal, individual, íntimo a respeito daquilo que deve ser feito e do que não pode ser realizado, ainda que lhe mandem - ameaçadora e impositivamente. 

Se entre os comuns dos mortais, como demonstrado por Thiago Vianna nos dois experimentos e no caso de Manaus, é usual abdicar do dever de exercício desse juízo íntimo e pessoal que deveria guiar as próprias ações todo o sempre, mesmo quando diante de figuras de autoridade com suas vozes de comando ou de intimidação, imagine-se o que ocorre quando a pessoa em questão guarda relação de subordinação com quem emite a ordem.

Esse é o ponto:

- Como pode a sociedade esperar ações etica e moralmente dignas por parte de pessoas ocupando posições subordinadas (funcionários públicos, militares, ocupantes de cargos de confiança etc.), se o comum dessa mesma sociedade é treinada a obedecer cegamente, ao invés de ser ensinada a refletir, julgar e resistir a ordens ilegais e/ou imorais e aéticas, mesmo quando partam de seus superiores, ainda que todos à sua volta a cumpram?







Um comentário:

O VIADO E A TRANSGRESSÃO POÉTICA disse...

Achei extraordinária a coincidência por que estou justamente terminando hoje de ler o livro de Hanna Arendt, Eichmann em Jerusalém e assistindo uma minissérie da BBC sobre "A Solução Final". Assustou-me ainda mais o fato que nos 4 últimos dias um pastor de Carolina do Norte- EUA veio propor a criação de campos de concentração para gays e lésbicas e ontem voltou à carga ao falar que deveríamos, nós, gays e lésbicas sermos enforcados em árvores, como o eram os negros nos anos 30 e 40... Acredito que o nazismo está entre nós, talvez nunca deixou de estar, nas ações cotidianas, inclusive nas de obediência: aos pais, padres, pastores, chefes, polícia, deus, deuses, presidentes/as, onde a submissão rompe a reflexão ética.A teocracia está acabando com o mundo livre e o Brasil é um filho predileto. Um amigo contra argumentou que hoje o nazismo não ocorreria, por que protestamos mais e temos a internet. Mas podem existir outras formas de opressão igualmente dolorosas e "eficientes". As religiões, por lidarem com a dualidade "Bem" e "Mal" sempre precisarão de bodes expiatórios para culpar e apontar o dedo em riste. O Totalitarismo, idem. Antes, judeus, negros, mulheres, hoje @s homossexuais. Sinto que estamos bem perto de uma ditadura teocrática "legalmente" estabelecida e não quero, eu, depois de tanta luta, recuar e me encolher e nem acho que essa deve ser a solução. Mas, confesso, tudo isso é assustador, é aterrorizante.
Beijos,
Ricardo Aguieiras
Aguieiras2002@yahoo.com.br