domingo, 19 de abril de 2015

A cultura brasileira de legitimação da violência

Por muito tempo circulou a versão de que o golpe de 1964 foi orquestrado e realizado pelos militares e que as torturas que aconteceram eram praticadas à revelia dos superiores, numa quebra de obediência à cadeia de comando. Com o avanço nas pesquisas revelou-se à saciedade o envolvimento da sociedade civil (pessoas "comuns", empresários etc.), sem falar na participação dos Estados Unidos (também comprovada de forma abundante), e o conhecimento dos elos mais elevados da estrutura do poder, inclusive do Presidente da República, na política estatal de tortura ampla, geral e irrestrita, de eliminação dos adversários políticos e desaparecimento dos seus corpos que se instaurou no país desde já 1964 (e não apenas após o AI-5 de dezembro de 1968, como se havia acreditado anteriormente).

Também por muito tempo falou-se apenas nas torturas praticadas contra presos políticos, esquecendo-se a cotidiana e histórica tortura contra os presos ditos comuns (no Brasil a nossa democracia envolve três grandes classes de cidadãos: os comuns, os especiais, e os desqualificados: pobres, negras e negros, travestis e transexuais, nordestinos, ocupantes de funções tidas como inferiores, detentores de pequeno volume de anos escolar ou de instrução). Muito tempo depois da dita redemocratização (que ainda não se encontra absolutamente concluída) é que a violência policial cotidiana entrou na ordem do dia da nossa sociedade. Então passou-se a clamar pela extinção das polícias militares - como se o uso arbitrário e excessivo da violência em suas diversas formas fosse exclusividade da polícia militar. 

Eu sou das que tem destoado dessa voz predominante. Na minha tese pude demonstrar que o apego às formas violentas na resolução de conflitos é um traço de nossa cultura e que as personagens públicas que encarnaram esse papel (jornalista, radialista, delegado), no que respeita a homossexuais e travestis, foram altamente recompensadas pela sociedade (seja através de maciça audiência, seja por meio de votos, elegendo e reelegendo-as sempre com votações recordes, seja, ainda, indiretamente, por meio de promoções, resultantes da não investigação ou punição dos delitos praticados. Não se trata, portanto, de uma deformação exclusiva das polícias militares. Ao contrário. É parte inerente da nossa cultura. Manifesta-se de maneira efetiva em todas as modalidades de polícia - militar, civil, federal, ferroviária, rodoviária, forças armadas - e seguranças - guardas legislativos, guardas municipais, seguranças privadas etc.- e de maneira legitimadora por meio dos discursos da população. Inclusive de parte daquelas pessoas com nível de doutoramento e com trajetória de pesquisa na área das ciências sociais (!). O que comprova a potência da dominação simbólica, onde o oprimido introjeta os valores estruturantes da sociedade onde foi socializado e, mesmo sofrendo os efeitos deles, atua no sentido de avalizá-los e defendê-los, incapaz de perceber os mecanismos simbólicos de seu funcionamento. Quem já se esqueceu dos justiçamentos ocorridos no Aterro do Flamengo, também no Rio de Janeiro, com um negro acorrentado a um poste de metal e as vozes que se levantaram em defesa do ato, inclusive de parte de uma apresentadora de telejornal, num canal de televisão (que é uma concessão de serviço público)? E as vozes que surgiram em apoio à dita apresentadora, endossando todos os seus comentários legitimadores de ações de justiçamento?

Quando este ano as ruas foram tomadas por pessoas clamando pela destituição de Dilma e a volta dos militares ao comando do Executivo Nacional (e até pela intervenção de Obama!), voltamos a ler e ouvir incontáveis comentários sustentando que os militares na ditadura de 1964 apenas atingiram pessoas que estavam contra a lei, nada tendo feito contra o cidadão de bem - como se o fato de cidadãos lutarem contra o regime (golpista, ilegítimo) desse aos agentes das forças governistas o direito de torturá-los, assassiná-los, dilacerar os seus corpos, desaparecer com eles (ácido e mediante outros estratagemas já revelados).

Me recordo do caso Amarildo, ocorrido na Rocinha, em julho de 2013 - ele desapareceu após haver sido conduzido por policiais para a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) local. Quando os ativismos virtuais e presenciais passaram a exigir a apuração do seu desaparecimento, vários comentários surgiram nas redes e ao vivo com a tese de que se ele foi preso é porque tinha alguma culpa, alguma coisa ele havia feito (a me recordar aquele dito patriarcal tão nosso, a dizer que o marido podia até não saber porque batia, mas a esposa sabia porque apanhava). Outros sustentaram que ele era envolvido com o tráfico de drogas local. Também sobre a sua esposa diversos foram os comentários que traziam o argumento de que ela também estava envolvida com o tráfico. - Como se qualquer desses argumentos autorizasse que policiais desaparecessem com ele.

Recentemente (02/04/15), quando o menino Eduardo Jesus, de dez anos de idade, foi fuzilado quase à queima roupa em  frente à sua casa, numa das comunidades do Alemão, no Rio de Janeiro,  até mesmo o ativista social do afroreggae pareceu aceitar a tese que começou a ser veiculada, de que ele seria um bandido. Também circularam imagens em que o garoto estaria armado. Ato contínuo, várias pessoas aderiram à tese de que posto que é bandido, legítimo o seu extermínio por agentes do estado encarregados da segurança pública.

Ano passado (16/03/2014), ao serem divulgadas as imagens de Cláudia Silva Ferreira, a auxiliar de serviços gerais que teve o seu corpo arrastado pelo chão, preso a uma viatura policial, após ter sido atingida por tiros no Morro da Congonha, em Madureira, quando saíra para comprar pão, também pode-se ler comentários nas mídias sociais afirmando que se ela estava naquele local naquele momento, boa coisa não estava a fazer. E, em vista de uma tão elástica imaginação, autorizado estaria o seu assassinato e a indignidade praticada contra o seu corpo, por parte de policiais (que são, recorde-se, servidores públicos, submetidos a regime de legalidade formal rigoroso). Segundo a sua filha, Thais Silva Ferreira, "eles pegaram ela, um pegou pela perna, outro pela calça, jogaram dentro da Blazer de qualquer jeito, disseram que ela era bandida, que estava dando café para os bandidos". Traduzindo: dado que na concepção pessoal  dos policiais (desconectada de qualquer ação que o comprovasse) ela estava dando café para os bandidos, mais do que acertado executá-la e tratar o seu corpo de forma abjeta, aviltadora.

Esta semana mais uma vez as mídias sociais virtuais foram sacudidas com uma notícia de violência presumivelmente praticada no interior das dependências de custódia, no estado de São Paulo. Trata-se do caso de Verônica Bolina, travesti e negra (aqui).  Tão logo começaram a se tornar consistentes as reações de indignação pela atrocidade praticada contra ela (desfigurar-lhe o rosto, desnudar parte de seu corpo, fotografá-la assim e disseminar as fotos pela internet), em sentido contrário se avolumaram (e ainda agora, no momento da atualização deste texto, seguem se avolumando) mensagens endossando as agressões e desqualificando Verônica por sua identidade de gênero, em razão da gravidade das agressões que ela é acusada.

A ferocidade dos comentários assusta. Sobrou até mesmo para o deputado Jean Wyllys, atacado em termos extremamente grosseiros, contra a sua pessoa e idoneidade moral. Criaram pelo menos duas comunidades no Facebook - "Somos todos a velhinha que foi espancada por Verônica" (nesse momento contando já com 4.937 curtidas) e "Somos todos o Carcereiro que teve a orelha arrancada por Verônica" (nesse momento já com 5.835 curtidas). Postaram a foto de um texto sob a afirmação de que se trataria do boletim da ocorrência que resultou na prisão da Verônica. Outra trouxe foto de uma mulher afirmando que se tratava da idosa agredida por Verônica (não era). A foto do carcereiro que teve a orelha decepada aparece, na comunidade a ele dirigida, com uma legenda em letras grandes: FACA NA CAVEIRA. O perfil feminino que divulgou a foto de uma idosa como sendo Laura, a vítima de Verônica, exibe memes agressivos pela redução da responsabilidade penal. Outro posta reiteradas vezes no mesmo post, como comentário, o texto da reportagem que trouxe notícias sobre o estado da senhora agredida, como a dizer, "vocês a estão defendendo, olhem o que ela fez na idosa!" Sequer o segmento evangélico se furtou a expressar os seus sentimentos profundamente cristãos, em reforço do estigma, da indignidade e da violência. Um, mais espiritualizado, brandiu: "Morte e porrada aos gays!" Outro, em pleno estado de beatitude, complementou:
Apanhou pouco ainda. Bicha covarde, pra bater em idosa essa lacraia com asma é homem. Ainda vem essa cambada de desocupados que adoram infringir a lei, desfilando nus em plena avenida paulista, querendo fazer de vítima esse marginal safado... Agora o carcereiro é homofóbico? Se uma praga dessas morre afogada na praia, o oceano vai ter que prestar contas por homofobia também?
E outra, temente a deus, fez coro: "A lacraia teve o que mereceu, é só procurarem imagens da senhora que apanhou dessa aberração"

Essas pessoas, por força da nossa tradição de crueldade (contra os povos originários, os negros escravizados, as mulheres, as crianças, os homossexuais, as travestis e até mesmo os animais) e da violência que se organiza e atua no plano simbólico, das significações convencionadas (cultural, portanto), passaram a justificar toda a violência que parece ter sido praticada pela polícia contra Verônica, pela violência que acusam Verônica de haver praticado (contra a idosa, que ficou extremamente machucada, contra as vizinhas que vieram acudir - outra travesti, de nome Beatriz e a mulher -  e contra o carcereiro, cuja orelha foi decepada). E, nesses discursos de justificação, a maioria se referiu à ela, Verônica, com os termos mais agressivos e desqualificadores possíveis de se imaginar, pautando-se sempre no fato de ela ser uma travesti.

Houve os que passaram (e ainda há os que estão) a argumentar que o fato de se haver levantado muitas vozes em repúdio às muito verossímeis torturas a que Verônica teria sido submetida por parte de policiais, estavam a transformá-la em heroína; a pretender que a mesma não respondesse pelos seus atos; a ignorar as agressões a que a senhora foi vitimada e os seus sofrimentos decorrentes. Em síntese, mais uma manifestação dessa turminha dos direitos humanos, desses LGBTs, da ditadura gay...

Ainda precisaremos de muitas e muitas décadas, muito e muito ensino público e privado de qualidade e de base humanística, para que consigamos superar o atual estado de barbárie em que nos encontramos enquanto nação. Enquanto houver aqueles que desqualificam e relegam a importância dos conhecimentos das áreas Humanas (história, sociologia, antropologia, direito - críticos, sempre!), a urgência de alterarmos o marco ordenador de formação fundamental e média para uma base humanística e crítica, não teremos sido capazes de construir um povo democrático, universalmente democrático. Não será a mera matrícula nas instituições formais de ensino, com suas precariedades todas, sobretudo de qualidade, o ensino voltado para "o mercado", ou mesmo para as áreas tecnológicas, que nos permitirão forjar nesse país continental e tão diversificado, uma população majoritariamente constituída na observância do humanismo crítico.

(Atualização 23/04/15, 14h53)

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