Coloco aqui a mensagem enviada a um interlocutor em conversa virtual sobre os desencadeadores das diversas modalidades de violência homofóbica, na tentativa de ampliar a discussão.
Realmente há uma tendência em nós a ver certos tipos de ocorrências tomando as suas consequências como se fossem suas causas. Esse, aliás, é um dos mecanismos de funcionamento da chamada dominação ou violência simbólica, tão bem examinada por Bourdieu.
Peço, porém, que raciocinemos juntos.
- O que é que faz com que, em cada sociedade ou em cada grupo, comunidade, "tribo" urbana, alguma característica individual venha a ser tomada, pelo coletivo dos indivíduos a ela pertencentes, como elemento de prestígio ou de desqualificação?
- O que é que faz com que, por exemplo, o exercício ativo e diversificado de experiências sexuais no homem seja tomado culturalmente como fator de prestígio, enquanto que conduta semelhante se adotada por mulheres decorre em desqualificação moral para a mesma?
- O que é que faz com que o estilo de masculinidade seja completamente diferente entre os integrantes de "tribos" de determinados praticantes de artes marciais (um certo tipo de praticantes de jiu jitsu por exemplo) e o praticado, valorizado entre os jovens adeptos de bailes "charme"? (objeto da pesquisa de Fátima Regina Cecchetto, Violência e Estilos de Masculinidade.)
Tentarei outro exemplo.
- O que é que faz com que um piquenique, quando realizado em praias e por pessoas integrantes das camadas populares seja visto pelos "outros" como prática de "gentinha" sem educação, "ralé", "farofeiros", enquanto que a mesma conduta, quando praticada por integrantes das camadas médias (por exemplo na Floresta da Tijuca), seja lida como "natural"?
Outro, bem pitoresco: o que faz com que roupas estendidas para fora da fachada das edificações seja entre nós tido como prática censurável enquanto que na Europa (Portugal e Espanha) é prática corriqueira?
Se respondermos que aquilo que determinará o modo de recepção das condutas e características individuais será o valor ou valores fixados em cada universo social, teremos condições de compreender os modos de funcionamento das dinâmicas de atribuição de prestígio e desqualificação e, via de consequência, as dinâmicas desencadeadoras da homofobia, que é o que nos interessa aqui.
Na questão das violências homofóbicas, parece aceitável afirmar que os desencadeantes sejam: a) a androcentralidade (a posse do falus como referente de prestígio e poder); b) a heterossexualidade tomada como norma; c) o feminino e toda a simbologia a ele associada (gênero) significados socialmente como inferiores, desprestigiados: o passivo sexual entre eles. – Porém, aqui é preciso fazer um parêntesis. Na questão do gênero há estilos que são recepcionados de modos distintos conforme os contextos. Há modelos (estilos) de masculino e feminino.
A esses fatores (referentes de significação ou paradigmas sociais) se associam outros marcadores sociais: classe, origem e posição sociocultural, geração etc.
Isso faz com que, por exemplo, a homossexualidade não seja tomada como relevante, apenas vista como mera característica individual entre tantas, em meios sociais como os chamados "artísticos" – teatro, artes plásticas etc. Também faz com que, por exemplo, a gente seja tratada pelo inspetor de polícia ou o policial militar de modo diferente segundo tenhamos ou não aspecto "pobre" (não integrante da "boa sociedade", portanto, desprezível, torturável, humilhável etc).
Vai fazer, ainda, com que o gay efeminado possa obter reconhecimento e prestígio a ponto de ocupar o posto máximo em comunidades de culto africano (há diversos tipos de candomblé e há igualmente variação nos modos de recepção do "adé"), enquanto que a sapa, ainda que ocupante de posição de prestígio ("mão de faca", "ekedi"), seja vista de forma restritiva, muitas vezes sendo forçada a dissimular sua masculinidade. Este foi o objeto do trabalho de Patrícia Birmam: Fazer estilo criando gêneros: possessão e diferença de gênero em terreiros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro.
Os modos pelos quais a sociedade interpreta (significa) os elementos, as características individuais, claro, influenciam a maneira pela qual o próprio indivíduo portador dessas características vê a si e os seus interesses e desejos.
Mas não é o modo pelo qual esse indivíduo se percebe que é o motivo, o desencadeador da violência, percebe? Muito menos os locais por onde frequenta. – Esses, poderíamos dizer, seriam as manifestações do modo pelo qual a sociedade significa práticas, desejos, condutas etc.
Penso que quando um gay se sente tão desprezível ao ponto de desejar ser punido (morto, torturado etc.), a procurar lugares e pessoas que possam realizar esse desejo, a sua pouca autoestima não é o fator desencadeante, porém uma manifestação, um sintoma, uma consequência do modo de estruturação social (os valores que produzem a arquitetural cultural).
O volume e o tipo de recursos socialmente mobilizáveis na realização / defesa de interesses (bens (capitais) econômicos e simbólicos, como tipo e quantidade de conhecidos ou amigos, nível instrução, local de moradia etc), assim como o modo de o indivíduo se perceber a si próprio (autoestima) são recursos que entram nos modos de lidar com a estigmatização de uma determinada forma de prática de desejo e afeto que, como visto, se organiza a partir de valores (paradigmas) culturais.
Há outros fatores presentes na violência homofóbica, como o gozo que o humano é capaz de auferir ao infligir tortura, humilhação, ao subjugar. – Esse é um aspecto que quase não se vê ser abordado.
Historicamente temos inúmeros, intensos, constantes registros de práticas de tortura, de destituição da dignidade e autonomia da pessoa, de submissão do indivíduo a uma condição humilhante abjeta. E não apenas entre os nazistas, mas aqui mesmo entre nós. De tão institucionalizadas que estão tornam-se parte de nossa cultura, invisibilizadas. Há um livrinho bem interessante sobre, é o Do Nunca Mais ao Eterno Retorno: Uma reflexão sobre a Tortura, do Luciano Oliveira.
Claro, tudo isso impregnado por uma cultura de violência, intolerância, competição predatória. Onde as divergências não encontram espaços de mediação, de composição, mas são resolvidas através da eliminação do diferente, por todo arsenal de práticas que conhecemos bem.
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