Da reprodução do desvalor e seus antídotos

Ao voltar nossa atenção para os processos de inferiorização pelos grupos de poder daqueles que lhes são diferentes, percebemos que a generificação é (apenas) um dos territórios – o primeiro – sobre os quais a noção de desvalor é inscrita. Para além das diferenças específicas de cada segmento5, o que realmente nos atinge a todos é a incapacidade de lidar com a alteridade sem transformá-la em instrumento inferiorizante. Ou, como diz Elias, o costume que temos de “ver todas as tensões e conflitos exclusivamente da perspectiva de uma das pessoas ou grupos envolvidos. [..] em termos de erros e culpas dos outros, dos adversários aos quais estamos ligados.”


A bilateralidade contextualizada dos processos
Santamaría, Goldwasser e Elias chamam atenção para o fato de que o estranhamento ante a diferença, a percepção dela como elemento capaz de desqualificação é um efeito que se produz no âmbito da relação, tanto quanto a valoração positiva, a pertença. Assim, desvio, divergência, estigma, segregação, vulnerabilidade, preconceito, retaliação, de um lado; e aceitação, integração, reconhecimento, prestígio, de outro, somente podem ser examinados no interior dos sistemas das relações onde foram produzidos10.

Na análise elaborada juntamente com Scotson, Elias observa certas regularidades, presentes nas mais diversas figurações envolvendo relações de poder, seja por parte de grupos ou indivíduos11. Entre essas poderíamos destacar os ganhos secundários que podem ser auferidos tanto por parte dos grupos de poder quanto da própria posição de segregado; a forte incidência das retaliações tão logo a correlação de poder se inverta; a possibilidade de que a segregação se manifeste de forma recíproca; a tendência do grupo de poder em fazer estender alguma característica positiva de seus integrantes individuais a todo o coletivo, fazendo inversamente disseminar por toda a parcela segregada qualquer atributo desqualificante de algum de seus integrantes isoladamente12. Também destaca que tais manifestações podem aparecer vinculando determinadas estruturas de personalidade com modos de organização de determinados Estados13.

Dentre os fatores que tornam eficazes as tentativas de desqualificação, sendo incorporadas pelos destinatários, encontram-se a coesão entre os integrantes do segmento de poder e a atomização relativa dos que são alvo desse processo. Poderíamos mencionar ainda as posições relativas ocupadas no espaço social global, em razão da soma de capital simbólico acumulado, oriunda do peso relativo de cada atributo disponível14.

Os custos sociais do medo
Na tentativa de compreender o porquê de tais disputas, Elias, embora reconheça o papel condicionante das estruturas sócio-culturais, examina mais detalhadamente aspectos da estrutura psíquica nas dinâmicas de desqualificação. Avançando em seu raciocínio sobre o porquê de a necessidade humana de obter distinção se expressar preponderantemente através da inferiorização de outra pessoa ou grupo, se detém a examinar o condicionante do medo que os humanos sentem reciprocamente, a tendência a se verem enquanto ameaça capaz de comprometer a sobrevivência uns dos outros.

Essa seria uma hipótese explicativa para a prática de se impedir mutuamente que o outro obtenha um “potencial maior do que o próprio”. No seu entendimento, o orgulho pessoal não necessariamente tem de estar vinculado ao status ou função de uma pessoa na sociedade, podendo se organizar em torno de “uma multiplicidade de características ou capacidades”. É quando esse sentimento de autovalor se mostra fragilmente estruturado, dependente de confirmação constante e vulnerável a ameaças (reais ou supostas) que se torna um dos deflagradores de processos de segregação e opressão. Em sua opinião, “só se pode esperar uma maior igualdade nos ou entre os grupos humanos, caso se consiga reduzir o nível do temor recíproco, tanto no plano individual quanto no plano coletivo” 16. [VER o TEXTO INTEGRAL AQUI]
http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/R/Rita_Colaco_38_A.pdf