quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Os Direitos Humanos e o Princípio da Não Intervenção


"Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascenção dos direitos é fruto de lutas, que os direitos são conquistados, às vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio do qual as necessidades e aspirações se articulam em reivindicações e em estandartes de luta antes de serem reconhecidos como direitos." (Ignacy Sachs)

Quero retomar o tema da postagem de 15 de abril, referente ao processo de construção dos mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos, para falar sobre as limitações à antiga noção de soberania estatal absoluta.

Nesse texto de abril, comentava que esse processo de intenacionalização dos direitos se deu após o final da II Guerra Mundial, decorrente do horror causado pela revelação das práticas nazistas.

Naquela ocasião, percebeu-se que a criação da Liga das Nações, após a I Grande Guerra, em 1919, não havia sido capaz de impedir a Segunda, muito menos as atrocidades verificadas, majoritariamente contra civis, seja por Hitler, seja por Stálin.

Tampouco o então chamado Direito Humanitário, que era a regulação, nos conflitos bélicos, da proteção humanitária devida aos militares postos fora de combate e às populações civis, foi respeitado.

Esses instrumentos todos tinham por objetivo fazer cumprir o respeito a valores tidos como inerentes à humanidade, cuja construção remonta à Declaração de Independência dos Estados Unidos e à Revolução Francesa (século XVIII).

Embora não tivesse tido, como não tem até os dias atuais, a capacidade de efetivamente impedir os barbarismos bélicos, esse movimento em busca da construção de mecanismos supranacionais vai, pouco a pouco trazendo também limitações ao anterior entendimento de que a soberania nacional era absoluta.

Assim, vemos que a Convenção da Liga das Nações, de 1920, ao fixar a possibilidade de sanções econômicas e militares serem impostas pela comunidade internacional contra os Estados que desrespeitassem a regulação, estava na verdade atenuando essa equivocada noção disseminada da soberania como algo intocável, acima do bem e do mal.

Equivocada porque já desde as campanhas internacionais pela abolição do tráfico e da escravidão (século XVIII) pressões e sanções internacionais se verificaram em face daqueles países que se recusavam a acatá-las.

Isso sem falar na talvez mais remota limitação ao direito interno, que era a regulação ao tratamento que deveria ser conferido aos estrangeiros.

Assim, ainda nos tempos do Império Romano, podemos ver a obrigação ao reconhecimento da cidadania do nacional, mesmo fora dos limites de seu país. Era o princípio de que o desrespeito ao cidadão romano significava ofensa à própria Roma, vigente ainda nos dias atuais.

Movimento semelhante podemos verificar com a criação da Organização Internacional do Trabalho. Criada após a Primeira Guerra, tinha por finalidade superar as ignomínias verificadas no processo de industrialização, no tocante à exploração da mão de obra, fixando um padrão internacional mínimo de dignidade em termos das condições de trabalho em todo o mundo.

Com o advento da internacionalização dos direitos humanos, após a II Guerra, diversas Convenções foram celebradas, todas implicando alguma forma de controle nos limites da soberania dos estados nacionais signatários, fora os Pactos: contra escravatura, tráfico e práticas análogas à escravatura, de 1956; contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos os degradantes, em 1984; a referente a eliminação de todas as formas de discriminação racial, em 1965; a sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, em 1979; a sobre os direitos das crianças, de 1989; a referente à proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e dos membros de suas famílias, de 1990, entrada em vigor apenas em 2003; a sobre os direitos das pessoas com deficiência, de 2006; a convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio e o Tribunal Penal Internacional, de 1948; a Convenção de Viena sobre Direitos Humanos, de 1993.

Só a Organização Internacional do Trabalho (OIT), sem dúvida o movimento normativo que mais influenciou na construção e aceitação da idéia do Direito Internacional dos Direitos Humanos, em sete décadas aprovou mais de cem Convenções Internacionais.

Nesse processo constata-se um movimento que vai da primitiva proteção aos interesses dos Estados para a garantia da proteção dos direitos do ser humano.

A pessoa humana torna-se, assim, sujeito de Direito Internacional, deitando por terra a equivocada ideia de soberania nacional absoluta.

É portanto não apenas admissível como desejável e necessária a intervenção da comunidade internacional em estados-nação que estejam desrespeitando os Direitos Humanos.

Observa-se, assim, que o Direito não é algo estanque, cristalizado, imóvel. Antes, está eternamente em movimento, fruto dos movimentos sociais, tanto nacionais quanto internacionais.

Nasce sempre de lutas empreendidas por prerrogativas (direitos) que estão sendo contestados, ignorados ou desrespeitados. Portanto, representam conquistas, jamais dádivas.

Encontram-se em relação direta com a determinação para a luta e a força política passível de ser acumulada e posta em movimento por aqueles que os reivindicam.

Referências:
Bobbio, norberto. A Era dos Direitos. Campus, 2004.
Hunt, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos - Uma História. Cia das Letras, 2009.
Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Saraiva, 10ª edição, 2009.

(As imagens são oriundas do sítio http://www.ciranda.net/spip/article3073.html.

Um comentário:

Rita Colaço disse...

Rev. Carta Capital nº649, de 08/06/2011, pág. 18:
"Novo clima nas Américas
Honduras - Zelaya retorna a seu país, que em troca é readmitido na OEA

Deposto e exilado em junho de 2009, o presidente Manuel Zelaya retornou em segredo, em setembro, e passou seus últimos quatro meses de mandato, até janeiro de 2010, tentando negociar com os golpistas a partir da embaixada brasileira em Tegucigalpa, sem resultado. Só agora, após quase dois anos, chegou a um acordo com o governo eleito durante o "estado de emergência". Porfírio Lobo extinguiu os processos e ameaças de prisão contra Zelaya que, em 28 de maio, voltou ao país, para ser aclamado por uma multidão, recebido no palácio e liderar a transformação da frente de resistência em partido. [...]"