sexta-feira, 22 de julho de 2011

A Constituição ameaçada - Quando o Parlamento é inepto

A Constituição da República, promulgada em cinco de outubro de 1988, fixa, no inciso XLI do parágrafo único do artigo 5º, que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”[1]. Significa dizer que a Constituição determina ao Congresso Nacional a aprovação de legislação complementar que descreva dos tipos penais do crime de discriminação (as condutas delituosas) e as sanções correspondentes – de todas as formas de discriminação.

 Ao compararmos a difícil e sempre sobrestada tramitação do projeto de lei PLC 122/2006 com a aprovação da lei complementar impeditiva do racismo, compreendemos a força que ainda exerce a permanência, no interior de alguns segmentos da sociedade, da representação social de homossexuais, travestis e transexuais enquanto seres imorais, pecadores e abjetos. 

A primeira proposta de sancionar práticas discriminatórias após a Constituição de 1988 foi implementada em cinco de maio de 1989. Exatamente sete meses após a promulgação da Carta Cidadã. Cuidava exclusivamente dos delitos motivados “por preconceitos de raça ou de cor”. Era essa a redação original da Lei nº 7.716, a despeito de a Constituição determinar que a punição deverá ser em face de “qualquer” tipo de discriminação. 

Em 21 de setembro de 1990, a Lei nº 8.081 estabeleceu crimes e penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou preconceituosos, motivados por questões de “raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional, praticados pelos meios de comunicação”. Em 13 de maio de 1997 foi promulgada a Lei nº 9.459, alterando a Lei nº 7.716 para ampliar a proteção. Passou a contemplar, ademais de preconceitos “de raça ou de cor”, “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”. 

Em 27 de setembro de 2010, através da Lei nº 12.288, foi instituído o “Estatuto da Igualdade Racial”. Proposto em 2000 pelo Senador Paulo Paim (PT-RS) – Projeto de Lei nº 3.198 -, o substitutivo de 2003 trazia em seu preâmbulo uma “Mensagem aos discriminados”, assinada “Movimento Solidariedade”: “A redação ora divulgada visa o debate e demonstra a ousadia do movimento que tem a firme decisão de construir políticas de combate ao preconceito e discriminações.” O “movimento” louva a iniciativa, como afirma ter feito anteriormente, “com o Estatuto da Criança e do Adolescente, do Índio e do Idoso.”[1]

Nenhuma referência porém é feita à orientação sexual, limitando-se a reconhecer como fatores discriminantes “sexo, raça, cor, etnia, procedência, origem, religião, idade, classe social ou deficiência física”[2]. No texto aprovado, o parágrafo único do artigo primeiro traz as conceituações para “discriminação racial ou étno-racial”; “desigualdade racial”; “população negra”; e “desigualdade de gênero e raça – que explicita como “assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais”[3].

Entretanto, desde sete de agosto de 2001, a deputada Iara Bernardi havia apresentado na Câmara dos Deputados o projeto de lei visando combater manifestações de preconceito e discriminação decorrentes de orientação sexual (PL 5.003/2001, posteriormente PLC 122/2006).

Em outras palavras, dois anos antes desse substitutivo de 2003 do Senador Paulo Paim, a questão da orientação havia retornado ao Parlamento (apresentada que foi pela primeira vez em 1987), tendo sido objeto de grandes discussões nos diversos espaços de comunicação, gerando a consequente conscientização acerca das transversalidades discriminatórias que se superpõem – ou seja, não há apenas as questões de gênero agravando a questão da discriminação étnica, mas igualmente aquelas decorrentes da orientação sexual.

 Com a autoridade que lhe confere sua experiência de ter ampliado e aprofundado o debate na relatoria do PLC 122/2007 no Senado, Fátima Cleide revela que, apesar de todos os esforços realizados no sentido de contemplar as reivindicações da bancada evangélica, a insistente resistência demonstrada pelos integrantes desse bloco em aprová-lo - a cada momento formulando um obstáculo novo -, constitui, ademais de um retrocesso em termos de Direitos Humanos, “uma postura de omissão do Congresso Nacional no seu papel de legislador”[4]

Cleide esclarece que as modificações introduzidas no projeto por ela enquanto relatora tiveram o objetivo de “ampliar a proteção legal contra o preconceito e discriminação, tornando o projeto mais claro, mais enxuto e assegurando a criminalização.” Após as sucessivas Audiências Públicas realizadas, a ela parecia que seria mais fácil, finalmente, obter o consenso,
pois várias questões levantadas pelos seus opositores foram consideradas e retiradas com a nova redação. Porém, este esforço não foi suficiente para garantir a tramitação do projeto de forma mais rápida. Ao contrário, os opositores acirraram suas posições, demonstrando sua falta de compromisso com o respeito às diferenças.[5]

Ou seja, pelo que se observa das ações reiteradamente empreendidas por esse bloco parlamentar, não existe efetivamente nenhum interesse na construção de um instrumento legal capaz de, cumprindo o que determina a Constituição, coibir a cultura discriminatória que diariamente vitima inúmeras pessoas pelo país inteiro: “[Eles] ignoram nossos esforços de diálogo e busca de acordo, bem como a ampliação da proteção legal que propomos no substitutivo (aprovado no Senado).”

Segundo a percepção de Fátima Cleide, os argumentos apresentados por esse bloco - que atua de forma monolítica -, apenas expressam o preconceito que possuem no que diz respeito ao reconhecimento das pessoas LGBTs enquanto sujeitos de iguais direitos, inclusive o de obter do Estado a proteção devida, fixada constitucionalmente. 

Para a ex-Senadora, observando os argumentos emocionais que tais parlamentares manipulam, percebe-se que a intenção que move esse bloco é “propalar ou propagar um ideário extremamente perigoso, que desconsidera inclusive a laicidade do Estado brasileiro, garantida na Constituição Federal”[6].


[1] PAIM, Paulo. Estatuto da Igualdade Racial. Brasília: Senado Federal, 2003. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pop_negra/estatuto_racial.pdf.
[2] PAIM, Paulo. Estatuto da Igualdade Racial. Brasília: Senado Federal, 2003. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pop_negra/estatuto_racial.pdf.
[3] PLANALTO. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm.
[4] GOMIDE, Sílvia. EXCLUSIVO - Fátima Cleide vê chances reais de o Congresso aprovar a criminalização da homofobia. Disponível em: http://valentinanaweb.blogspot.com/2011/03/exclusivo-fatima-cleide-ve-chances.html.
[5] GOMIDE, Sílvia. EXCLUSIVO - Fátima Cleide vê chances reais de o Congresso aprovar a criminalização da homofobia. Disponível em: http://valentinanaweb.blogspot.com/2011/03/exclusivo-fatima-cleide-ve-chances.html
[6] GOMIDE, Sílvia. EXCLUSIVO - Fátima Cleide vê chances reais de o Congresso aprovar a criminalização da homofobia. Disponível em: http://valentinanaweb.blogspot.com/2011/03/exclusivo-fatima-cleide-ve-chances.html.

[1] CONSTITUIÇÃO da República. In: Código Civil e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2007.
p. 12.

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