terça-feira, 1 de março de 2016

Mestre Valentim, o grande escultor colonial, era negro!

É elucidativo observar como são mencionadas individualidades que conquistaram reconhecimento,  suplantando os processos de estigmatização a que seria alvo, em razão da posse de traços tidos como desqualificatórios  (origem, etnia/cor, gênero, orientação sexual etc.). Pessoas que se distinguiram pela posse de alguma alta habilidade (letras, direito, atuação política, música, escultura, etc.) frequentemente foram referidas e retratadas ou com a omissão, ou com a alteração de tais características - quando não de ambas as formas. Trata-se de mais uma forma de manifestação da violência simbólica. 

Por meio desse apagamento, promove-se a invisibilização  da existência de pessoas de destaque integrante das comunidades formadas por outras pessoas possuidoras daqueles traços tidos como inferiorizantes. Reforçando-se, assim, a ideia estereotipada de que tais comunidades seriam "naturalmente" inferiores. Dessa forma, os demais possuidores do mesmo traço de individualização não poderão contar com expoentes em atividades valorizadas positivamente nos quais possam se espelhar. Essa prática é bem conhecida de homossexuais, travestis, transformistas, nordestinos pobres e, também, dos negros.

Quem não conhece o processo de negação da bissexualidade de Zumbi dos Palmares? O tabu sobre a bissexualidade de Pedro Nava; sobre a homossexualidade de Mário de Andrade? E o embranquecimento (que durou tantos anos) de Machado de Assis, do engenheiro André Rebouças,  de José do Patrocínio, entre tantos outros?

Pois eu quero falar de um outro: O embranquecimento do Mestre Valentim - ou Valentim da Fonseca e Silva, o grande escultor, entalhador e urbanista do período colonial, no Rio de Janeiro. Autor, entre outras obras, do chafariz que leva o seu nome e fica na atual Praça XV (antigo Terreiro do Carmo, erigido a mando do governador Gomes Freire de Andrade, o Conde de Bobadela, que governou de 1733 a 1 de janeiro de 1763, quando faleceu, vitimado por mal súbito)  e da criação do primeiro parque público das Américas, o Passeio Público, no centro da cidade do Rio, no local onde ficava a Lagoa do Boqueirão da Ajuda e, dentro dele, de várias obras, como a Fonte dos Amores e a Fonte do Menino - Parque que na gestão do atual prefeito Eduardo Paes tem sido alvo de criminoso abandono, permitindo o saqueio de suas obras e a sua destruição, apesar de inúmeras denúncias a diversos vereadores e ao Ministério Público Federal (o Passeio é bem tombado federal).

Veja essas imagens:

Representação de Ms Valentim, no Passeio Público, RJ   






A mesma anterior. Observe os cabelos lisos e os lábios.

Parece cópia da mesma do Passeio Público. Encontrada em: http://pit935.blogspot.com.br/2011/11/noticias-e-informacoes-25-de-novembro.html                



Lápide com uma representação do rosto de Valentim, existente no interior da Igreja do Rosário, afixada no centenário de seu falecimento, em 1913, próxima de seu túmulo. A autoria dessa efígie é de Adalberto Mattos. Ver em http://www.rioecultura.com.br/coluna_patrimonio/coluna_patrimonio.asp?patrim_cod=18

Agora, observe esta:
Quadro de João Fracisco Muzzi, sobre a reconstrução do Recolhimento do Parto. Em primeiroo plano, Mestre Valentim, nitidamente negro, apresenta do projeto da reconstrução do Recolhimento ao Vice-Rei Dom Luíz de Vasconcelos e Sousa.                









Sobre o incêndio do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, ocorrido em 24 de agosto de 1789 e que também atingiu a Igreja, dizem Mello Barreto Filho e Hermeto Lima (História da Polícia do Rio de Janeiro - 1565 - 1821. RJ: A NOITE, 1939,  pág.126), que à época em que escreviam o livro, havia, 

nas paredes principais da igreja de Nossa Senhora do Parto, hoje toda modernizada, dois grandes quadros pintados por Leandro Joaquim e nos quais figuram, assistindo à ação destruidora do fogo, o vice-rei Luiz de Vasconcelos, seus ajudantes e outras personalidades, inclusive o genial e muito feio mestre Valentim, a quem se deve toda a orientação artística do Passeio Público.


Acaso a suposta "grande feiura" alegada por Barreto Filho e Hermeto Lima não seria simplesmente o fato de os traços de Valentim não se coadunarem com a estética autorreferente europeia? Ou, em outras palavras, pelo fato de os seus traços expressarem a sua ascendência materna negra?

Veja este desenho, de autoria de Marques Júnior e publicado no mesmo BARRETO FILHO, Mello e LIMA, Hermeto (História da Polícia do Rio de Janeiro - 1565 - 1821. RJ: A NOITE, 1939,  pág. s/nº, entre as de nº 112 e 113, sem contudo mencionar a sua origem). Compare com as outras representações e tire as suas próprias conclusões:

BARRETO FILHO, Mello e LIMA, Hermeto. História da Polícia do Rio de Janeiro - 1565 - 1821. RJ: A NOITE, 1939,  pág. s/nº, entre as de nº 112 e 113.


Outro detalhe eloquente, é que em nenhum dos locais onde encontrei dados biográficos de nosso grande mestre entalhador, escultor e urbanista, há a menção do nome de sua mãe - apenas a menção de que era negra, o que não era incomum -, ou o de seu pai - o que era incomum, dado que há a menção de que o mesmo era português e de posses (contratador de diamantes, segundo a fonte abaixo). Veja a transcrição feita pelos professores Vagner Pereira de Souza (professor do Curso de Pós-Graduação em Saúde Pública do Centro Universitário Celso Lisboa) e Teresa Cristina de Carvalho Piva (Professora Visitante do HCTE/UFRJ) de um livro de 1856, de autoria de Porto Alegre:

Nascido provavelmente em Cerro, Minas Gerais, em 1745, Valentim da Fonseca e Silva era filho de uma negra escrava e de um contratador de diamantes português. Mestiço, Valentim teria poucas oportunidades no Brasil colonial e escravista do século XVIII, por tal motivo, foi levado para Portugal quando seu pai retornou àquele país em 1748. (PORTO ALEGRE, 1856)


Referências:
Agradeço aos membros do grupo S.O.S. Patrimônio, hospedado no Facebook, pelas contribuições prestadas, com a socialização de links e imagens com representações de Mestre Valentim e dados sobre sua trajetória e produção artística - sobretudo a Carlos Ditadi, Glaucia Santos Garcia e Schimidth Mont Clair:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Valentim da Fonseca e Silva
http://ipatingacsfx2embarrocobrasileiro.blogspot.com.br/...
http://www.rioecultura.com.br/coluna_patrimonio/coluna_patrimonio.asp?patrim_cod=18
http://www.hcte.ufrj.br/downloads/sh/sh3/trabalhos/Vagner_Pereira_e_Teresa_Piva_-_Mestre_Valentim_Trabalho_Completo.pdf
http://pit935.blogspot.com.br/2011/11/noticias-e-informacoes-25-de-novemro.html


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