terça-feira, 17 de maio de 2011

OS VOTOS DOS MINISTROS DO STF E O FUTURO DOS SEGMENTOS DISCRIMINADOS

Muito se tem escrito sobre a histórica e  unânime decisão do STF que declarou válidos e obrigatórios os princípios constitucionais da não discriminação, da isonomia e da autodeterminação. Com base neles,  empregando a interpretação sistemática e analógica - como determina a lei de interpretação - a nossa mais alta esfera de jurisdição reconheceu que os direitos decorrentes da união estável entre parceiros heterossexuais se aplicam igualmente nos casos em que sejam homossexuais os parceros. Eu, aqui, gostaria de abordar, ainda que de maneira bastante breve, dois aspectos que decorrem da histórica decisão e que de meu ponto de vista são de grande significado.

Trata-se, em primeiro lugar, de seu aspecto de "ponto arquimediano", de base de apoio, para todos os movimentos sociais em suas demandas, e não apenas para a questão da união estável homossexual. Em segundo, de seus efeitos a médio e longo prazo, sobretudo no tempo mais longo, sobre as atuais formas de apresentação das identidades dos "homossexuais" - gays, lésbicas, travestis e, mesmo, ouso dizer, transexuais.

Afirmo que a relevância de o mais alto tribunal do país - o tribunal constitucional - de forma unânime, haver declarado a obrigatoriedade daqueles princípios (com o que mostrou-se um tribunal sintonizado com as mais atualizadas correntes internacionais de direito constitucional e direitos humanos) ultrapassa a questão mais imediata - o reconhecimento da aplicabilidade aos homossexuais do instituto da união estável. E por que? 

Porque a fundamentação jurídica que embasou o reconhecimento - a obrigatoriedade dos princípios constitucionais da não discriminação, da autodeterminação e da isonomia - tem efeito sobre todo o campo jurídico no que tange principalmente os segmentos da população que se encontram em situação de vulnerabilidade, em situação de discriminação, tratados como párias.

A máxima instância judiciária do país declarar, de forma unânime, que tais princípios não se resumem a meras intenções, a um ideal, um vir a ser futuro e intangível, mas, ao contrário, constituem diretrizes a um tempo paradigmáticas e obrigatórias (quer dizer, exigíveis); e - mais - o fato de haver proferido uma tal decisão durante o exame de situação que atinge a uma parcela da sociedade que, no curso da história da ascensão das religiões de matriz judaico-cristãs, foi caracterizada como abjeta, imoral, assume o significado de um novo paradigma, tanto para o campo jurídico quanto para o campo cultural. Daí ver tal decisão como um novo ponto arquimediano.

Me explico. Diz-se que Arquimedes, o matemático e inventor grego,  para expressar a relevância do ponto de apoio para a alavanca, cunhou a frase mundialmente conhecida: "dai-me um ponto de apoio que moverei o mundo". Com isso queria transmitir a ideia fundamental da importância de um ponto sólido, uma base segura para, por meio dela, operar movimentos tidos por impossíveis. 

Pois bem. De meu ponto de vista, defendo que a decisão do STF no caso do reconhecimento da união civil aos homossexuais, pelos fundamentos expressos nos votos dos seus ministros, ao afirmarem a obrigatoriedade e a exigibilidade dos princípios constitucionais - ou seja, declararem sua força enquanto norma cogente e não meramente principiológica -   constiui esse "ponto arquimediano", esse novo paradigma jurídico. 

Ou seja, a base jurídica, o ponto incontroverso, inconteste, assente, sobre e a partir da qual todos os movimentos sociais podem alavancar suas agendas de direitos.

Embora semelhante entendimento já seja pacífico na mais atualizada doutrina jurídica internacional, entre nós - dado que ainda inexistisse uma tão completa afirmação em sede de máxima instância jurisdicional,  mormente em campo de direitos humanos e a envolver segmento cujo posicionamento na escala social fora historicamente (na história da civilização de matriz européia) classificado como o mais vil e infame - permanecia ainda a visão dos princípios como meras diretrizes, sem força de norma obrigatória, sem exigibilidade.

Estabelecido, como foi, o caráter  exigível, obrigatório, daqueles princípios, torna-se mais difícil às diversas instâncias - seja da sociedade, seja do Estado - negar-lhes validade como até então víamos ocorrer.

Não digo que com essa decisão tudo passará a operar como num passe de mágica. Não se trata disso. Digo apenas que, a partir de uma semelhante afirmativa torna-se muito mais difícil continuar a negar os direitos que emanam de tais princípios e sobre os quais os diversos movimentos sociais lutam. 

As batalhas políticas desses setores, que são, em última análise, batalhas por dignidade, democracia efetiva e participativa, estado laico, finalidade social da propriedade, sociedade justa e fraterna, não discriminatória, passam para um novo patamar. Ao patamar do universalismo exigível aos direitos inscritos na Constituição, até então tomados como meros princípios.

O outro aspecto que gostaria de pontuar como corolário da decisão do STF em cinco de maio, diz respeito às próprias formas de apresentação das homossexualidades. Isto é, de seus estilos identitários. 

O sociólogo Pierre Bourdieu, em seu livro A dominação masculina, demonstra como o dominado, por força mesmo da violência (física, mas, sobretudo, simbólica) a que se encontra submetido, tende a se ver e, mais, se constituir, a partir da forma pela qual é visto, percebido, pelos segmentos dominantes.

Tomemos um exemplo. A categoria social da velhice. Os idosos, de ambos os sexos, há coisa de quarenta, cinquenta anos atrás eram pessoas completamente diferentes dos velhos de nossa contemporaneidade. As mulheres, principalmente, operaram profundas transformações em si mesmas. O envelhecimento, hoje, não implica a morte em vida que antes acompanhava a entrada na "terceira idade". As mulheres com mais de sessenta anos em nossos dias usufruem da vida, passeiam, dançam, vão ao cinema, aprendem e usam a informática e a internet, fazem amigos, enfim, desfrutam de um viver muito mais pleno do que as avós de nossas mães.

Não há nenhuma novidade nisso. Diversos autores, seja na sociologia, seja na antropologia, seja na história, afirmaram o caráter processual, histórico, cultural, seja dos corpos, seja das identidades sociais. No entanto, no mesmo livro, ao final, em um capítulo inserido após a conclusão, Bourdieu faz algumas considerações que julgo muito importantes sobre o movimento gay e lésbico.

Ali,  refletindo sobre o que considera as intinomias do movimento LGBT mundial, Bourdieu indaga sobre se é possível o fato de que um movimento social que exerceu profunda influência na conscientização coletiva de que categorias tidas como "sagradas", "naturais", "imutáveis", como família, nação, heteronormatividade, sexo, gênero, sexualidade - ou qualquer outra entidade social -, são na verdade construções culturais, fruto de uma dada relação de forças, pode se contentar em simplesmente obter o reconhecimento jurídico, mantendo-se, contudo, o status de "diferentes".

Ele responde que a luta pelo reconhecimento sociojurídico operada pelos movimentos LGBTs mundiais, para realizar transformações verdadeiramente duradouras no campo cultural, terá que trazer em seu bojo uma proposta de mudança dos esquemas de pensamento, isto é, das formas através das quais se processa a apreensão da realidade, suas categorias de percepção, ou seja, os conteúdos das representações sociais.

Ocorre que, na medida em que os movimentos LGBTs (como os movimentos feministas) põem em xeque tais conteúdos representacionais - por exemplo, a normatividade heterossexual, os modos de composição das famílias, a estabilidade dos gêneros e seus estilos, e a fixidez da orientação sexual -, estão, ao mesmo tempo, colocando em xeque as incorporações dessas categorias tambem pelos gay, lésbicas, travestis, transexuais.

Dito de outra forma. Nesse processo de transformação das mentalidades, das formas de compreensão e, mais, de constituição das categorias e marcadores sociais, não será apenas a sociedade heterossexual que será transformada.

De forma semelhante às transformações decorrentes dos questionamentos e reivindicações feministas, que tanto transformaram mulheres quanto os homens - por sociais que são todos os humanos -, tambem as mudanças culturais oriundas das demandas dos movimentos LGBTs por reconhecimento sociojurídico transformarão não apenas as formas de perceber a realidade, mas, inclusive, os indivíduos e, claro está, tambem os gays, lésbicas, travestis e transexuais.

Na medida em que as pessoas, individual e coletivamente, isto é, a sociedade, for compreendendo o quão desimportante é o sexo da pessoa amada pelo professor, juiz, desembargador, patrão, empregado, vizinho, irmão, pastor, enfim, de qualquer que seja, igualmente se tornará desimportante reproduzirem-se estilos de gênero cujas condições de possibilidade apenas se viabilizam no contexto dessa dada normatividade - heterossexista e androcêntrica - que se busca superar, por opressiva.

Suplantado esse paradigma (androcêntrico, heterossexista, dominador, assimétrico), através da afirmação de valores como igualdade (isonomia, universalidade), respeito mútuo, fraternidade,  responsabilidade,  livre determinação, todos os atores sociais se transformarão e serão transformados; não apenas os "heterossexuais". O fato exclusivo do sexo da pessoa amada passará a ter o mesmo valor distintivo que, por exemplo, o fato de ser canhoto na atualidade. Simples detalhe. Como ter olhos verdes ou azuis, ter cabelos louros ou castanho.

Da mesma forma que os canhotos não são mais submetidos à fogueira ou aos castigos físicos da antiguidade, e não se sentem mais, eles próprios, pessoas diferentes, "endemoniadas"; da mesma forma que as mulheres - nos centros urbanos e escolarizadas pelo menos - se percebem enquanto seres dotados do mesmo valor e dignidade que os homens - ainda que muitos resistam a este fato, violentando-as e matando-as; da mesma forma que as "avozinhas" de hoje em nada se assemelham às avós de nossos pais ou avós, assim tambem se verificará com as contemporâneas identidades ditas "homossexuais".

O processo de transformação sóciocultural rumo a formas de viver, se relacionar e perceber o mundo baseadas no respeito recíproco, na livre determinação e na universalidade dos direitos deu apenas um passo com a decisão do STF em cinco de maio de 2011. Como disse um dos ministros em seu voto. Um largo e profundo passo, porém.

Mas as cotidianas violências e assassinatos nos desafiam a seguir avançando. Compreendendo e assimilando as vitórias e suas implicações - para o bem e para o mal. Mas seguindo, todavia.

Para o bem de todos e felicidade geral na coexistência das populações.



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