sábado, 23 de julho de 2011

Estado Constitucional ou "obscurantista, industriado, voluntarista e sectário"?

Em 04 e 05 de maio desse ano, o país assistiu o Supremo Tribunal Federal julgar a ADPF 132 e ADI 4277, cujo pedido era a interpretação conforme a Constituição do artigo 1.723 do Código Civil, que trata da união estável ("reconhecendo como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família"). 

Ali, por unanimidade, os ministros integrantes da instituição da República detentora do poder-dever de interpretar a Constituição, decidiram que as uniões homossexuais devem ser reconhecidas como famílias, aplicadas a elas as mesmas regras e os mesmos efeitos "da união estável heteronormativa".

Disse mais a instância judiciária que detém o controle da constitucionalidade. Por força dos requisitos técnicos empregados na análise - a normação do caso ou, como expressamente formulado no pedido, a interpretação conforme a Constituição -, os ministros, em seus votos, tiveram que examinar, dentre outras, as chamadas "preliminares de mérito". Isto é, os fundamentos jurídicos que antecedem a apreciação do pedido em si.

Assim, para examinar se as conjugalidades formadas por pessoas homossexuais (genérica referência para gays, lésbicas, travestis e transexuais) são análogas em seus efeitos e obrigações àquelas formadas por pessoas heterossexuais, precisaram examinar diversos institutos e categorias jurídicas, como, por exemplo, o que é família, qual o seu fundamento e natureza jurídica; o que são os direitos fundamentais e quais as suas garantias asseguradas constitucionalmente etc.

Em que pese o julgamento final, unânime, fixando a analogia entre união estável constituída por pessoas homossexuais e aquelas formadas por pessoas heterossexuais - observados os mesmos requisitos - quero aqui trazer, sinteticamente, as normações estabelecidas naquele julgado.

Reviso o magistral voto do ministro Ayres Britto - relator das ações -, na tentativa de, de algum modo, contribuir para desmistificar a celeuma fantasiosa que se criou - um determinado bloco bem específico de nossa sociedade criou e disseminou - em torno do direito à nãodiscriminação e à plena isonomia entre homo e heterossexuais.

- Ingênua, utópica? 

Pode ser, mas, sobretudo, estupefata, acometida de grande assombro diante das manifestações em contrário advindas por esse bloco social que vem se especializando em travar verdadeira guerra santa - no contexto de um estado laico, constitucional, republicano, pasmem! - contra o legítimo, íntimo, pessoal e privado (tal como a religião) direito ao exercício da sexualidade.

Um bloco social monolítico que, na sábia e feliz expressão do Ministro, se move a partir de um preconceito - uma pré-noção imposta sobre a realidade

a ferro e fogo de u’a mente voluntarista, ou sectária, ou supersticiosa, ou obscurantista, ou industriada, quando não voluntarista, sectária, supersticiosa, obscurantista e industriada ao mesmo tempo. Espécie de trave no olho da razão e até do sentimento, mas coletivizada o bastante para se fazer de traço cultural de toda uma gente ou população geograficamente situada.


Logo no início de seu voto, o Relator, Ministro Ayres Britto, reconhecia a notória divergência existente “em todo o tempo e lugar” no que respeita a liberdade da orientação sexual das pessoas.

Divergência essa, prossegue o ministro, que ocorre de maneira quase sempre temerária para a estabilidade das relações sociais e da qual não escapam juízes monocráticos ou membros de tribunais judiciários, com os presumíveis riscos da indevida confusão entre a instância subjetiva de cada um e a objetividade do direito cuja aplicação se impõe[1].

Em outras palavras, a divergência de entendimento pessoal, íntimo, religioso que seja (subjetivo, portanto) acerca da orientação sexual das pessoas não pode, não deve e é inadmissível nos termos da Constituição (inconstitucional, portanto) que venha a comprometer a objetividade das normativas fixadas em nosso sistema constitucional, cuja observância e aplicação se impõe igualmente a todos, ainda mais aos juízes singulares e coletivos.

Na apreciação dos pedidos formulados nas ações, é necessário o enfrentamento e a superação, um a um, de todos os argumentos contrários trazidos pelos amigos da corte (pessoas e entidades da sociedade civil que são admitidas a integrar o processo, como forma de democratizar as discussões em matéria constitucional relevante) que se opõem à plena isonomia entre heterossexuais e travestis, transexuais e homossexuais.

Por conta disso, examinando em profundidade e detalhe o sistema constitucional, o Ministro Ayres Britto fixa a normação que dali se extrai:

1. A Constituição estabelece “categórica vedação ao preconceito”. Sexo, origem social e geográfica, raça e cor da pele, são contingências pessoais do indivíduo, não podendo em absoluto ser utilizadas para “instituir desigualação entre elas [pessoas], a não ser em caso de expressa norma constitucional em contrário”.

Via de conseqüência, toda e qualquer tentativa nesse sentido advinda seja do “comum das pessoas” ou do “próprio Estado”, passa “a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de ‘promover o bem de todos’”.

Por “bem de todos”, segue interpretando o ministro, compreende-se uma situação jurídica ativa a que se chega por meio da eliminação do preconceito.

“Bem de todos” remete ao “constitucionalismo fraternal” fixado em nossa Constituição Cidadã.

– É aquele norte, aquele padrão de sociedade nacional instituído pela nossa Lei Fundamental e cuja realização se obtém por meio da integração (e não meramente inclusão, adverte o ministro) social “dos estratos sociais historicamente desfavorecidos e até vilipendiados – como por exemplo,  negros, mulheres, deficientes, índios e, mais “recentemente”, os “homossexuais”.

Integração a ser viabilizada “pela imperiosa adoção de políticas públicas afirmativas da fundamental igualdade civil-moral (mais do que simplesmente econômico-social)”, concomitantemente com a instituição de “leis e políticas públicas de cerrado combate ao preconceito, a significar, em última análise, a plena aceitação e subsequente experimentação do pluralismo sócio-políticocultural. Que é um dos explícitos valores do mesmo preâmbulo da nossa Constituição e um dos fundamentos da república Federativa do Brasil (inciso V do art. 1º).” (Negrito do original. Sublinhei.)

Pluralismo que serve de elemento conceitual da própria democracia material ou de substância, desde que se inclua no conceito da democracia dita substancialista a respeitosa convivência dos contrários. (Negrito do original)


2. Estabelecida a absoluta proibição de discriminar e a determinação de que seja observado “o bem de todos” – que se obtém pela observância do dever de observar o respeitoso convívio dos contrários e pela promoção de políticas públicas de promoção da igualdade civil-moral e “de cerrado combate ao preconceito”, demonstra o Ministro, sempre a partir do próprio texto constitucional, que a liberdade para dispor da própria sexualidade é um valor assegurado constitucionalmente.

Trata-se, demonstra ele, de “um tipo de liberdade que é em si e por si, um autêntico bem de personalidade”, integrado à inviolável esfera da autonomia da vontade individual.

E sendo a sexualidade a expressão de um misto de instinto e sentimento, não deve o direito “incorrer na temeridade de regulamentar o factual e axiologicamente irregulamentável”, exceto em casos de desrespeito à liberdade do outro.

Enquanto direito fundamental e bem da personalidade que é, a sexualidade (que se expressa a partir da orientação sexual da pessoa) constitui uma “direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana”. E, assim, encontra-se no elenco das chamadas “cláusulas pétreas” – aquelas normas constitucionais que não podem jamais ser alvo de propostas com o objetivo de sua eliminação, na conformidade do preceito constante do inciso IV do §4º do art. 60 da Constituição da República (cláusula que trata dos “direitos e garantias individuais”).

3. Na medida em que a Constituição “nem obrigou nem proibiu” o uso da sexualidade, porém “vedando às expressas o preconceito em razão do sexo”, o resultado da técnica de normação realizada – isto é, extrair a norma presente na Constituição, através de sua interpretação sistemática – implica em reconhecer que esse direito de uso – do uso da sexualidade – integra o conjunto da autonomia das vontades do indivíduo, “constituindo-se em direito subjetivo ou situação jurídica ativa”[2].

Ayres Britto esclareceu ainda que essa liberdade, que se concretiza através do direito à intimidade e à privacidade de seus atos, constituindo-se como se constitui em direitos e garantias fundamentais da pessoa, encontra-se protegida pelo artigo dez da Constituição, que assegura, de maneira autoaplicável – isto é, com força de norma positiva plenamente exigível –, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.

4. Mais adiante, debruçando-se sobre a acepção do termo preconceito em nossa Lei Fundamental, o ministro esclarece que se trata de “um conceito prévio”; “um juízo de valor não autorizado pela realidade, mas imposto a ela.”

Uma pré-noção que é imposta sobre a realidade
 a ferro e fogo de u’a mente voluntarista, ou sectária, ou supersticiosa, ou obscurantista, ou industriada, quando não voluntarista, sectária, supersticiosa, obscurantista e industriada ao mesmo tempo. Espécie de trave no olho da razão e até do sentimento, mas coletivizada o bastante para se fazer de traço cultural de toda uma gente ou população geograficamente situada.

5. Após muito lecionar, sempre à luz do texto fundante de nosso estado-nação, estabelecendo, inclusive, que à luz da principiologia constitucional o valor axial da família contemporânea e o vínculo afetivo, vale dizer, o compromisso do cuidado recíproco, o Ministro Ayres Brito lança o que vejo como a pá de cal sobre toda e qualquer dúvida que ainda acaso subsista em qualquer mente razoavelmente destituída daquelas pré-noções acima referidas.

Em mais uma lapidar lição – ou, melhor dizendo, normação, para nos atermos aos precisos termos técnico-jurídicos -, o Ministro nos recorda de outro dos princípios elementares do Direito – enquanto ciência social.

Trata-se do enunciado que estabelece que “não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um interesse de outrem.” (Negrito do original)

Ora, dado que a “heteroafetividade em si” dos sujeitos heterossexuais “não os torna superiores em nada”, estes encontram-se em plano de equivalência absoluta com a homoafetividade em si dos indivíduos homossexuais.

É que nada há de possível que se alegue “que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham.”

Dito de outro modo, assim como o exercício do direito à heterossexualidade não implica na invasão ou cerceamento do direito ou interesse dos homossexuais, da mesma maneira o exercício da homossexualidade (travestilidade, transexualidade, bissexualidade) de per si não constitui agressão ou ameaça a direito ou interesse dos heterossexuais.

- Afinal, os "homossexuais" não estão em busca de exercer sua sexualidade senão com outros "homossexuais".

No que, então, gays, lésbicas, travestis e transexuais incomodam tanto esse bloco religioso e obscurantista?

- Em sua própria capacidade para buscar a felicidade? De lutar por ela ao preço do escárnio, da violência, do assassinato? 
           

[1] BRITTO, 2011, p. 2-3.
[2] BRITTO, 2011, p. 20-21. Subjetivo porque é uma prerrogativa, uma faculdade, uma possibilidade; a pessoa usa se quiser, mas sabe que tem o seu direito assegurado, ainda que não venha a usá-lo.

Referência:
BRITTO, Ayres. Voto. ADPF 132 e ADI 4.277, 04/05/2011. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277.pdf

Nenhum comentário: