quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O papel e a responsabilidade da imprensa

Hoje pela manhã o jornalista Ricardo Boechat, na Rádio Band News FM, comentava o despropositado destaque dado ao fenômeno climático ocorrido nos Estados Unidos, que atingiu a cidade de Nova York.

Segundo ele, a foto impressa na primeira página de O Globo, hoje, ocupava cerca de 4/5 da mesma. Os outros grandes jornais não fizeram muito diferente: todos deram amplo destaque àquela notícia.

O Comentarista da Band na própria cidade (cujo nome eu não me recordo neste momento), antes da crítica de Boechat procurara justamente tranquilizar brasileiros e brasileiras com parentes naquela cidade. Disse o jovem que, da maneira que os telejornais brasileiros noticiam os problemas acarretados (interrupção de energia, problemas no transporte coletivo etc.), a impressão de quem não está na cidade, acompanhando diretamente os transtornos, é que Nova York sucumbiu; está devastada, o que em absoluto não é verdade. A deformação dos fatos era tanta ao ponto da mãe do jornalista, em telefonema na noite anterior, ter insistido com o jovem para que ele prometesse que não sairia de casa, que não iria à rua.

Boechat, com a argúcia que lhe caracteriza, aproveitou o comentário para chamar atenção para o desmedido destaque que vem sendo concedido ao evento, noticiado, segundo ele, como se tivesse acontecido em Ipanema.

Em concordo com ambos. Sim, é fato notório que os meios de comunicação brasileiros sentem uma necessidade colonizada de destacar desproporcionadamente qualquer evento que ocorra na sua - deles - capital cultural.

E também é verdade que o jornalismo brasileiro prima pela absoluta ausência de responsabilidade naquilo que eleje como notícia e o modo como faz. Sobretudo em sua forma televisiva, que é a de maior alcance entre a população.

Poderia desfiar um rosário de exemplos nos quais superdimensionaram, por exemplo, coberturas de crimes. Não apenas pelo espaço exagerado, chegando à exaustão, mas também pelo modo de noticiar, o tratamento dado à notícia, não raro com afirmações falsas, declarando uma "comoção nacional" inexistente ("o crime que abalou o país" etc.). Exemplos temos à farta.

Poderia também falar sobre os modos desrespeitosos que muitos reporteres tem (talvez acossados pela competição) no trato com familiares de vítimas de crimes e/ou acidentes. Igualmente exemplos não faltariam.

Mas o que mais me incomoda é o fator imbecilizante que vem marcando os modos de abordagens das questões cívicas. Quando se trata de noticiar as propostas de leis ou códigos, ou de investigações sobre supostas ocorrências de delitos contra a administração pública, praticados por servidores e/ou particulares.

Em casos como esses, ao invés de exibirem o compromisso com o esclarecimento da sociedade, isto é, com o seu dever profissional de informar, o que vemos o mais das vezes são matérias tendenciosas, buscando ostenssivamente "fazer crer" o leitor, ouvinte, relespectador, numa versão dos fatos - aquela do interesse do dono do veículo de informação. Ocultando os aspectos que não é de interesse revelar, exibir, noticiar - como vimos acontecer descaradamente com a publicação do livro Privataria Tucana, por exemplo.

Tenho observado o tratamento dado por exemplo, à questão da apuração dos delitos praticados durante a ditadura em relação ao tratamento que sem sendo dedicado às chamadas questões controvertidas, presentes no anteprojeto do novo Código Penal e em outros projetos de lei.

Enquanto na questão dos desaparecidos políticos e das práticas de tortura se tem verificado uma abordagem séria, tendente ao esclarecimento do público, vejo a forma de tratamento dado às questão do direito ao aborto, ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a inclusão das discriminações praticadas em razão da orientação sexual e da identidade de gênero no elenco das ações-tipo sancionadas criminalmente (seja pela lei antidiscriminação, seja pelo código penal), abordagens incompetentes - deliberada ou inconscientemente, não saberia dizer.

Incompetentes precisamente porque não cuidam de cumprir a função primeira do jornalismo que é informar. No que toca esses temas específicos, o que se vem visto é o alimentar da balbúrdia consistente na mistura das esferas cívica (da vida civil) e religiosa (do âmbito privado, particular, subjetivo das pessoas).

Enquanto na abordagem das questões objeto da Comissão da Verdade o tratamento tem sido esclarecer, dar a conhecer, explicar, quando se trata das chamadas "questões controvertidas" (para quem, cara pálida?), o tratamento majoritário nos telejornais tem sido precisamente estimular, fomentar, aguçar essa mixórdia entre convicção religiosa (sim, no singular, porque não são enfocadas as diversas visões existentes no país, mas apenas as, digamos, mais barulhentas, como a católica e as neopentecostais) e o paradigma civil, expresso na Constituição.

No trato desses temas, destacam e sobrevalorizam posicionamentos dessas duas correntes religiosas, o que termina por realimentar os seus propósitos a, outra vez, integrar, de forma siamesa, os assuntos de estado e sociedade civil. Esquecidos de que são assuntos exclusivos da esfera cívica, colocam-se de bom grado no papel de colaboradores para o enfraquecimento do secularismo ainda não implantado entre nós.

Ao dar destaque ao entendimento peculiar dessas correntes religiosas, como que legitimam o seu entendimento, ou seja, mostram-se parciais, tendenciosos, pois não trazem, em respeito ao princípio básico da profissão que é o contraditório, as outras visões que existem sobre os temas. 

Por exemplo, aquelas integrantes do paradigma científico, que são as que devem ser valorizadas e gozam da prerrogativa de balizar o trato das questões civis, pois cuidam do mundo concreto, das relações reais entre agentes sociais, que são os entendimentos dos campos jurídicos (constitucional, civil, família, penal), da saúde pública, da antropologia, da sociologia.

Ao abrirem esse desmesurado espaço para a vocalização do entendimento peculiar de apenas um segmento religioso (uma peculiar forma de visão do cristianismo), como que dão legitimidade à captura da esfera cívica pela religiosa. A tendenciosidade é tamanha que silenciam inclusive as outras vozes dentro do mesmo campo (dentro das mesmas religiões, pois vários são os integrantes do catolicismo e das religiões evangélicas que possuem entendimento diferente).

Terminam, portanto, servindo ao projeto político dessa específica corrente religiosa, que busca insistentemente transformar em verdade a sua retórica ideológica fundada em concepções transcendentais, místicas. 

Retórica que opera em sua argumentação como se o direito a uma vida livre de preconceito e discriminação não fosse um valor universal, que dele pudesse ser excluído um segmento da sociedade. Ou, por outras palavras, que as práticas discriminatórias, expressão de preconceito, algumas merecem sanção do estado, outras, não. Ou seja, a dignidade e a integridade da vida do judeu, do religioso, do negro, do idoso, da criança e da mulher merecem proteção, ao passo que a dignidade e a integridade da vida do/a homossexual, do/a travesti e transexual, não.

Como se faculdade (de casar, de abortar) significasse  DEVER, OBRIGAÇÃO.

Como se o reconhecimento de direitos a determinados segmentos sociais implicasse na violação dos direitos dessa comunidade religiosa.

Urge que os profissionais jornalistas, reporteres, apresentadores se ponham a refletir sobre o seu papel e as suas responsabilidades profissionais e sociais no processo de consolidação do país como uma democracia republicana e laica.



 

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