sábado, 10 de novembro de 2012

Ativismo, que ativismo? II


A militância hegemônica ao longo desses aproximadamente 19 anos em que pode trabalhar a partir de financiamentos (nacionais e internacionais)  não reconheceu importância à questão da homofobia.

 - Por que utilizo este marco? Porque é quando se tem condições de desenvolver ações em tempo integral, em bases profissionais, usufruindo de fontes de custeio.

Este sempre foi um tema "macabro", indigesto ao movimento. E por que?

De um lado, por envolver mortes - e mortes em situações bárbaras. De outro, por envolver certas representações da homossexualidade que os setores hegemônicos não tinham nenhum interesse em se aproximar, por receio de "contágio", isto é, de serem confundidos com "este tipo de gente".

E que representações eram estas?

Uma, a representação do homossexual como portador de uma sexualidade que, de tão marginalizada,  era exercida basicamente a) no âmbito da clandestinidade de encontros fortuitos, anônimos e, muitas vezes, despersonalizados; e, b) pela via da prestação de serviços sexuais no interior da lógica da dominação de classe, situação que envolvia "bichas" de um lado, e "bofes" ou "michês", de outro. Esse modo clandestino e obscuro de exercício da sexualidade desqualificada não era visto como consequência da estigmatização, mas como uma sua característica inerente, levando a que este homossexual fosse construído como depravado, promíscuo, degenerado etc., imagem que não raro era incorporada pelos próprios.

E a outra, a de que os homossexuais (travestis nos anos 80 e início dos 90 ainda faziam parte do universo dos homossexuais), cuja alternativa de sobrevivência implicava no somatório das marginalizações - da orientação sexual; do gênero; do estilo de gênero; da exploração dos serviços sexuais como atividade profissional -, eram eles próprios, todos eles, delinquentes (praticantes necessários de furtos, chantagens etc.).

Essas duas representações da homossexualidade sempre estiveram associadas quando se noticiava a violência homofóbica.

Os conteúdos desqualificados presentes nessas representações fazia com que a parcela hegemônica não desejasse se ver confundida com elas, as representações. No entanto, por falta de clareza quanto à lógica das representações, terminava por vê-las, as representações, como "coisas" em si, ou seja, como sendo as pessoas concretas sobre as quais elas eram disseminadas.

O projeto de assimilação conduzido pelas parcelas hegemônicas do movimento se caracterizava (caracteriza?) por estabelecer nítida diferenciação a respeito de qual modelo de representação de LGBT investiam de legitimidade, com vistas à obtenção do reconhecimento. Isto remonta à segunda metade dos anos oitenta.

Nesse contexto, falar da violência homofóbica, quantificá-la, compreender-lhe as dinâmicas, publicizá-la, eram ações que definitivamente não interessavam de maneira alguma àquela militância 

Não à toa que até bem poucos anos atrás os relatórios do GGB, elaborados por Luiz Mott, pesquisador, acadêmico e ativista de longa data, eram ostensivamente rechaçados. Não se tratavam de críticas quanto à sua metodologia, aos seus critérios para definir aquilo que seria ou não seria violência motivada por ódio à homossexualidade e aos homossexuais. As críticas giravam em torno da "imagem" que sua divulgação passaria do Brasil.

Isso se tornou mais claro quando da assunção do PT ao Executivo Federal, em 2003. Com o PT (este PT da "carta aos brasileiros" e aliança com os setores mais retrógrados da sociedade nacional) no comando, cabia aos seus seguidores, estrategicamente controlando o movimento LGBT, apresentando e tendo aprovados projetos e ocupando cargos,  fazer a sua parte no projeto de apresentar uma boa imagem do país no exterior. 

O governo Lula tinha intenções de elevar o país a uma posição de destaque, de liderança no jogo interacional, com vistas à conquista da vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU. Nesse projeto, não cabiam denúncias sobre a situação de total descalabro no que toca aos Direitos Humanos no país. 

Essa lógica pode ser constatada, ainda nos dias que correm, no portal da ILGA LAC. Ali só é possível encontrar notícias que tem o nítido propósito de transmitir uma imprecisa, tendenciosa e parcial imagem da situação efetiva que desfrutam os LGBTs que vivem no Brasil. 

Contrariamente aos ativistas que atuavam em relação à população Carcerária, à violência contra as mulheres e em favor da verdade sobre os crimes da ditadura, que não tiveram "pudor" em colocar o dedo na ferida e expor, denunciar, relatar, quantificar o estado da violência aos Direitos Humanos nesses setores, os hegemônicos LGBT optaram por não expor as mazelas nacionais. 

Optaram em não tratar do sistemático extermínio de homossexuais praticado em nosso país - com o beneplácito das populações e das instituições encarregadas da apuração dos crimes, vez que partilham da mesma forma de visão a respeito das práticas homossexuais que os autores dos crimes. (O que pode ser comprovado através do sucesso de votos que tradicionalmente conquistaram aqueles que se empenharam em campanhas ostensivas de incentivo ao extermínio de homossexuais e, mais recentemente, os que cuidam de insistir na sua desqualificação e negativa de direitos; e pelos índices que os agentes de estado ocupam entre os autores de práticas discriminatórias)

Preferiram, ao invés, realizar uma atuação política, digamos "mais limpinha": Ao invés de operar sobre crimes reais, com suas macabras dinâmicas de execução, seus corpos esquartejados, violados, putrefados, esmigalhados (vide os documentários Basta um Dia, de 2006 e  Sexualidade e Crimes de Ódio, de 2008, ambos de Vagner de Almeida), envolvendo tudo o que de desagradável e doloroso tal realidade enseja, preferiram operar a partir da lógica genérica dos "direitos humanos em relação às questões referentes à orientação homossexual e à identidade de gênero", em espaços de discussão internacionais, envolvendo, necessariamente, o profundo dissabor de incontáveis viagens por diversas cidades do mundo, com estadia, traslado e alimentação pagos.

Ou seja, a estratégia de ação adotada por setores hegemônicos do movimento durante os oito anos do governo Lula foi a de privilegiar a esfera internacional - os Princípios de Yogyakarta, a participação em uma rede internacional e a apresentação da proposta de Resolução na ONU, em 2004 (proposta que foi intensamente rechaçada pelos países árabes, obrigando a sua retirada em 2005) - em detrimento do enfrentamento da violência homobófica no espaço nacional.

O que significa dizer que o combate na esfera internacional não passava em absoluto pela contraparte  no campo nacional; isto é, a busca pela aprovação da orientação sexual e da identidade de gênero como motivadores de práticas discriminatórias objeto de sanção criminal.

Em outras palavras, os hegemônicos - leia-se os petistas controladores do movimento LGBT - no âmbito internacional, lutavam por "Direitos Humanos às questões relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero". 

No espaço "doméstico", porém, desestimulavam frontal e concertadamente todas as tentativas de sensibilização para a gravidade das sistemáticas ações de extermínio de travestis, gays e lésbicas. Intensos e reiterados debates foram travados nos espaços de listas de discussão virtual do yahoo grupos, notadamente a listagls e a gaylawers. E em todos eles a tônica dos ativistas petistas (e outros não partidarizados) era a de que não se deveria cuidar da homofobia: ela se resolveria naturalmente a partir do reconhecimento das conjugalidades homossexuais.


Registre-se que todo o conhecimento acumulado pelas pesquisas realizadas a partir do projeto Disque Denúncia LGBT, implementado no Rio de Janeiro, no início do governo Garotinho, oriundo do Grupo Atobá, não foi objeto de apropriação política por parte desse movimento.  - A partir das pesquisas realizadas nas Paradas é que se verificam iniciativas no sentido de dar divulgação aos achados, assim mesmo, em âmbito nacional. 

Registre-se, igualmente, que durante o período em que esse canal de denúncias, então chamado CERCONVIDH DDH-RJ, funcionou, havia o cuidado em repassar, reiteradamente, informações à imprensa. - O que, de meu ponto de vista, funcionou como simples exceção, pois não se verificava igual compromisso com a socialização das informações por parte de outras instâncias do movimento.

Essa opção estratégica, ao meu ver, explica o por que de o Brasil não haver conseguido nenhum avanço efetivo na criminalização da discriminação por motivo de orientação sexual e identidade de gênero, embora o projeto de lei originário seja de 2001, comparativamente a diversos outros países da América Latina.

Nenhuma instância - ong, associação de ongs que seja - possui o movimento LGBT brasileiro para o sistemático repasse de informes aos organismos internacionais de direitos humanos sobre os crimes que seguem sendo praticados, cada dia que passa de forma mais intensificada.

O chamado "Caso Renildo", ainda hoje, passados 19 anos, não foi objeto de denúncia à CIDH-OEA. Apenas foi realizada denúncia à Ong internacional Tortura Nunca Mais que, em absoluto, possui qualquer poder de censura ou reprovação. Tanto é que a sua consequência concreta foi sugerir que o movimento organizasse ações de pressão junto aos parlamentares e demais órgãos de estado, cobrando que a ação penal o seu processamento a salvo das manipulações que vinha sendo objeto.

Somente no ano passado é que o governo federal abriu um canal para a formalização de denúncias - um primeiro modo de quantificação.
 
Diferentemente daqueles movimentos citados - pelas melhoria das condições da população carcerária, contra a violência doméstica e familiar contra as mulheres e pela apuração da verdade sobre os crimes da ditatura -, os hegemônicos do movimento LGBT lutaram para que fosse criada a imagem do país como a de um lugar receptivo e tolerante aos LGBTs, em total desrespeito às milhares de vítimas das práticas de extermínio que vimos assistindo desde, pelo menos, a década de 1980 em nosso país.

Por um lado, relegaram a segundo plano a importância da criminalização da homofobia - por meio de discursos os mais disparatados, num claro atravessamento da questão de classe e posição.

Por outro, se omitiram de denunciar tais práticas junto aos organismos internacionais, mesmo tendo TODOS OS MEIOS para tanto.

E o que temos hoje?
Do ponto de vista dos hegemônicos, por um lado, um movimento paralizado, imobilizado pelo corte de financiamento governamental. Por outro, os ativistas hegemônicos (petistas) entre traídos e levados às cordas pelo governo Dilma, que ostensivamente recusa-se ao diálogo com os seus antigos cabos eleitorais e reiteradamente os tem desqualificado (enquanto luta e enquanto força social), pelas reiteradas manifestações em relação a programas caros à agenda do movimento (escola sem homofobia, campanha antiaids no carnaval, desmonte do programa de prevenção e combate à Aids).

Do ponto de vista dos chamados autonomistas - um universo disperso nas redes virtuais -, pelas suas próprias características de dispersão, não cuidaram ainda de construir alguma concertação, ainda que seja pontual, em determinados temas e ações que seja.

O resultado? - É a subutilização dessa energia potente que se tem visto nos diversos blogs e mesmo grupos virtuais. Incapazes de construir qualquer associação e coordenação (como vimos ocorrer, por exemplo, com os blogueiros progressistas), não tem conseguido potencializar a força que, de fato, possuem.

Nesse contexto, a não utilização do poder de pressão oriundo das entidades internacionais de direitos humanos (e de outras fontes possíveis de contribuir na modificação da atual correlação de forças no Congresso e mesmo no Executivo nacional), é apenas um sintoma.

Um comentário:

Benjamin Bee disse...

Achei esse artigo absoluto. E espero que tenha sido apenas um dos primeiros da série que virá.

Rita Colaço, sua competência em organizar as idéias é única e portanto não haverá de fugir à responsabilidade.

Eu gostaria de ver desenvolvido justamente os parágrafos finais do artigo, em que fala da militância autonomista. Eu acredito que temos que nos entregar à essa análise para desenvolvermos essa militância que reputo a mais eficaz pela própria independência.