sábado, 17 de novembro de 2012

Veja como vitrine de uma parcela totalitária e fraudulenta da sociedade nacional

A visão que o jornalista da Veja expressou a respeito das conjugalidades homossexuais não é em absoluto exclusividade sua.

Ao contrário: integra parcela da sociedade nacional. Parcela barulhenta, autoritária e que cada vez mais se organiza e se lança na disputa política no cenário social em busca de adesões, não se furtando ao emprego deturpado de seus conhecimentos profissionais. 

Ocupando posições estratégicas nos mais diversos campos de especialização, utiliza-se de discursos contraditórios, ora buscando respaldo em uma noção idealizada de "natureza", ora operando com noções ahistóricas de "família" e "casamento".  

As instituições sociais "família" e "casamento", como sabem todos aqueles minimamentes escolarizados, são construções culturais, guardando formas e regramentos diversificados, na conformidade com a sociedade e o tempo histórico. 

Falar genericamente de "família tradicional", como se fora um monolito universal e autoexplicável, portanto, constitui verdadeira leviandade intelectual. 

- De que tipo de família estão a se referir? A que tradição? À patriarcal, autoritária, fundada na subjugação da mulher e da prole, que instituiu o direito ao prazer sexual como exclusividade masculina e estabeleceu à mulher o lugar de objeto sexual e mão de obra servil?

Os agentes integrantes dessa parcela ideológica, pela sua especialização profissional, sabem o quanto essa instituição sofreu modificações ao longo dos séculos, em nossa cultura ocidental, fruto das lutas das mulheres e feministas por dignidade, igualdade, autodeterminação (liberdade civil e política).

De forma semelhante às instituições sociais, também com o mais completo despudor se apropriam de determinados princípios jurídicos, deturpando-lhes o sentido e o alcance, como estratégia na batalha política pela imposição à toda sociedade nacional de sua visão de mundo peculiar, pessoal e íntima, passando por cima do respeito à diversidade, entre as quais a religiosa, e à autodeterminação.

Dentre os princípios constitucionais mais usualmente manipulados, encontram-se:

Liberdade de expressão
Branida como se fosse um direito absoluto, ao abrigo do sopesamento.
Entre a dignidade da pessoa humana, consistente na efetividade de uma vida livre de discriminação e a liberdade de expressão, necessariamente há que prevalecer aquele.

Essa corrente da qual o jornalista de Veja faz parte entende, contrariamente, que a liberdade de expressão, quando utilizada para desqualificar homossexuais, travestis e transexuais, é um direito à margem de qualquer regramento, concepção absurda em um regime democrático.

Liberdade religiosa 
Exercido como se dissesse respeito exclusivamente à sua específica, em detrimento de todas as demais religiões professadas no país, inclusive do direito de não professar qualquer crença.

Direitos Humanos
Como se constata na matéria noticiando a criação da ASSOCIAÇÃO DE JURISTAS EVANGÉLICOS, ANAJURE, se apropriam do conceito de Direitos Humanos (que se estruturam precisamente a partir da noção de dignidade da pessoa) para apresentar publicamente sua luta contra o reconhecimento das conjugalidades homossexuais enquanto entidade familiar, em isonomia de condições com as conjugalidades heterossexuais, numa total inversão do seu sentido jurídico-político e histórico (ver, a respeito, LYNN HUNT, A invenção dos Direitos Humanos - uma história. SP: Cia. das Letras, 2009; FÁBIO KONDER COMPARATO, A Afirmação histórica dos Direitos Humanos, SP: Saraiva, 2006; FLÁVIA PIOVESAN, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. SP: Saraiva, 2009).

No que respeita às ações tendentes a impedir o reconhecimento isonômico do casamento entre pessoas do mesmo sexo, releva destacar que fazer valer a isonomia neste caso não viola o direito de nenhuma pessoa, o que torna a celeuma desprovida de sentido prático. Afinal, a quem interessa o objeto de amor e desejo de outrem? A forma de conjugalidade construida para si, de comum acordo, entre pessoas capazes de consentir? 

Desvela-se, portanto, o quanto traz de ranço autoritário, totalitário mesmo, se pretender impedir o reconhecimento da isonomia e do status social a essas formas de famílias.

Direitos da personalidade (ou direitos fundamentais da pessoa humana) 
Dentre os quais o da autodeterminação, não podem ser objeto de plebiscito, como já estabelecido em decisão do Relator da PEC 113/99, deputado Ibrahim Abi-Ackel, que propunha a realização de consulta popular para a instituição da pena de morte temporária.

Como destacado no voto do Ministro Ayres Brito, por ocasião da votação da ADF 132, a democracia consiste no regime político onde a maioria não pode impor a sua visão de mundo, sufocando os direitos das minorias políticas. Em outras palavras, democracia é o regime político onde são respeitados os direitos das minorias políticas.

Entretanto, assistimos especialistas cuja função precípua é precisamente observar e fazer observar tais princípios - objeto de acordos internacionais firmados e ratificados - vir a público e, sem pejo, declinar suas pessoais convicções contrárias à Constituição da República e contrárias aos princípios que regem a sua atividade profissional - a saber, a universalidade, a impessoalidade e a imparcialidade.

O papel histórico das forças progressistas
Diante da vigente conjuntura política e cultural aos segmentos progressitas da sociedade brasileira se impõe o desafio de construir a necessária concertação com vistas à defesa do valor de fundo que tais correntes totalitárias buscam destruir, que é precisamente a autodeterminação - valor que contém como pressupostos necessários a liberdade, a dignidade, o respeito à alteridade (e, via de consequência, à liberdade religiosa). 

Valor que esteve no cerne  das lutas de todos os movimentos sociais que emergiram nos anos 1960 e 1970 no mundo ocidental e no Brasil: as lutas pelos direitos civis dos negros estadunidenses, as lutas pacifistas, feministas, contra a colonização, as lutas da mulher operária, dos camponenes, dos estudantes; do movimento contracultural.

Somente se tais setores de nossa sociedade se mostrarem capazes de compreender que, para além das demandas específicas de cada segmento (casamento entre pessoas do mesmo sexo, aborto, educação, saúde e segurança públicas e de qualidade, reforma agrária, liberdade religiosa, respeito às religiões de matriz africanas), o que está verdadeiramente em jogo é o projeto político de país (república democrática, participativa, fundada no intransigente respeito aos direitos humanos (dignidade, liberdade, autodeterminação), serão capazes de fazer frente ao desafio político que está posto.


(Atualizado às 18h22)

Um comentário:

Dan Jung disse...

... texto extraordinário, Rita, muito bem fundamentado e compromissado com a legitimidade, a validade e a fidedignidade.


Texto certeiro! Com uma elegância cognitiva lancinante, sua 'escritura' esvazia qualquer tentativa de alarido. Muito bom, amei!


Dan Jung