quarta-feira, 29 de junho de 2011

Juiz paulista fala sobre a cruzada religiosa contra os direitos civis LGBT

Hoje o texto é do juiz Marcelo Semer, de São Paulo. Foi publicado originalmente no sítio Terra Magazine. O destaque em vermelho é de minha autoria. Os links ali introduzidos, tambem.
Marcelo é ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia, é autor de Crime Impossível e a proteção de bens jurídicos (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Coordenou a edição do livro Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho (LTr). É tambem o autor do Blog Sem Juízo, de quem extraí o texto integral da sentença do juiz Fernando Henrique Pinto, da comarca de Jacareí, SP, a primeira que, aplicando a decisão vinculante do STF, converteu a união estável homossexual em casamento. 
Boa leitura!

Cruzada religiosa combate direitos civis 

dos gays

Marcelo Semer
De São Paulo
O vereador Carlos Apolinário, ligado à Assembleia de Deus, apresentou proposta para criar em São Paulo, o dia do "orgulho hetero", levando o projeto para votação às vésperas da Parada Gay.

A Marcha para Jesus virou palco de repúdio à decisão judicial que garantiu a união estável homoafetiva, tendo como principal estandarte que "o verdadeiro Supremo é Deus". 

A deputada Myriam Rios, hoje missionária católica, fez pronunciamento na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro propagando a expressão "orientação sexual pedófila". Dizia ter medo da proximidade de uma babá lésbica a filhas pequenas ou do assédio de um motorista travesti sobre seus meninos. 

Porque a incorporação de direitos civis aos homossexuais está incomodando tanto assim aos ativistas da religião? 

Não são eles os primeiros que deveriam se destacar pela defesa do amor, da solidariedade e do abrigo aos mais vulneráveis? 

Onde estão as tradicionais preocupações com desigualdades sociais e manifestações de fraternidade? 

Há quem diga que os grupos religiosos se sentiram intimidados com a proposta de criminalizar a homofobia. 

Paradoxo dos paradoxos, pois a punição do preconceito é justamente o combustível para a liberdade de crença. 

Em algum lugar do mundo, membros das mais diversas religiões já sentiram na pele o terror do preconceito e da intolerância. Como reproduzi-lo, então? 

Depois da decisão do STF que autorizou a Marcha da Maconha, reconhecendo o legítimo direito à manifestação, muitos disseram em um misto de birra e revolta: se vale defender a maconha, vale falar qualquer coisa. Acabou-se a mística da homofobia. 

É uma ideia equivocada. 

Como bem explicou o ministro Celso de Mello, em voto primoroso, a liberdade deve ser garantida para expressar os mais diversos pensamentos. Mas nunca para ferir -o Pacto de San José da Costa Rica, que o país subscreveu, exclui do âmbito protetivo da liberdade de expressão todo estímulo ao ódio e ao preconceito. 

Propor a legalização da maconha é legal. Dizer que os homossexuais são promíscuos, não. 

Reverenciar o "orgulho hetero" também não é o mesmo que fazer uma parada gay -assim como prestigiar a consciência negra não se equipara em louvar o "orgulho branco", típico dos sites neonazistas. 

A diferença que existe entre eles reside na situação de poder e de vulnerabilidade. 

Os movimentos negros e gays se organizam pela igualdade e procuram combater a discriminação - o "poder branco", memória do arianismo, busca exatamente reavivá-la. Não quer igualdade, quer supremacia. 

Basta ver que a proposta do "orgulho hetero" se impõe como um resgate da "moral e dos bons costumes", tal como uma verdadeira cruzada. 

Por fim, mas não menos importante, a absurda vinculação entre homossexualidade e pedofilia. 

Não é grave apenas pelo que mostra -um profundo desconhecimento da vida. Mas, sobretudo, pelo que esconde. 

Jogar o defeito no outro, no diferente, naquilo que não nos pertence, é o primeiro passo para esconder o mal que nos cerca, e assim evitar sua punição. 


Não se trata de tara, perversão ou qualquer outro atributo de fundo moralista. É simplesmente violência. 

Misturar as estações não é ruim apenas por propagar um preconceito infundado. Mas por nos distanciar do problema e, em consequência, da solução. 

Quando um dogma supera as lições que a vida nos traz, quando o apego à filosofia é maior que o amparo a dor, quando até o sempre solidário cerra os punhos, um sinal de alerta se acende. 

É preciso relembrar que somos todos humanos.


Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.

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