Grupo de amigos é violentamente espancado na Rua Joaquim Silva, nos Arcos da Lapa, na madrugada de sábado. Guarda Municipal ri. Cabine da PM vazia. Delegacia, descaso, frieza, demora.
Diante da covardia ilimitada, inundaremos a Lapa de amor. Uma infantaria amorosa na Praça dos Arcos da Lapa, às 18h do sábado, 28!
Cada vez mais e mais. A Lapa, o Centro, a Zona Sul, Subúrbio, Baixada, o Estado, o País!
não me interessa a segurança da minha casa, o vidro fechado, o carro blindado, condomínio isolado, a paz do gueto. eu quero reclamar esse espaço que é a rua, porque, se não velho, nada disso faz sentido. eu não acredito, ou não quero acreditar, que é assim mesmo, que tome cuidado e que fica por isso. no último sábado, na lapa, eu não apanhei sozinho! apanhamos todos!
Acreditar
Na existência dourada do sol
mesmo que em plena boca
nos bata o açoite contínuo da noite.
Arrebentar
a corrente que envolve o amanhã,
despertar as espadas,
varrer as esfinges das encruzilhadas.
(O Cavaleiro e os moinhos, João Bosco)
Segue relato de uma das vítimas:
"para trás ficou
a marca da cruz
na fumaça negra
vinda na brisa da manhã
ah, como é difícil tornar-se herói
só quem tentou sabe como dói
vencer satã só com orações"
(agnus sei, aldir blanc/joão bosco)
amigos, relato. nem todo mundo soube do que aconteceu no último sábado
na lapa. é um pouco longo, mas peço a atenção de vocês, principalmente
daqueles que frequentam o bairro à noite.
fui espancado, com
mais três amigos, conhecidos de muita gente, por um grupo de caras
motivados por ódio num crime de homofobia.
eram quase cinco
da manhã. nós havíamos acabado de sair do sinuca tico e taco, na rua da
lapa, acompanhando uma amiga que queria comer alguma coisa no ximenes
(esquina da joaquim silva com teotônio, em frente à escadaria do
selaron). depois que ela comeu e foi embora a gente continuou ali,
sentado no meio-fio, de boa, conversando.
foi nessa hora que dois malucos se aproximaram.
éramos em cinco, quatro homens e a xxx que tava com a gente desde o
início (o xxx só chegou depois). eles não nos conheciam, nós não os
conhecemos, é importante dizer. foi apenas por entenderem que éramos
gays, pela forma que estávamos sentados, de mãos dadas, ou encostados
uns sobre os outros, que nos agrediram.
primeiro, dizendo
coisas, como: "ih, vocês são viadinhos, sentados aí todos juntos? não
curtem mulher não, né? deviam tá pegando mulher. eu já peguei quatro
buceta hoje! e vocês ficam aí no meio da rua, com todo mundo vendo!" e
indo além: "quem vai chupar meu pau?", perguntou um deles, jogando uma
moeda de dez centavos em nossa direção.
a gente reagiu atirando
a moeda de volta e deixando bem claro que não tava afim de papo com
eles, e que fossem embora, porque, afinal, já haviam cumprido seu
dever/obrigação social de sair na sexta pra pegar mulher.
estimulados pelo ódio de ver amigos trocando afetos em público,
inadmissível moral e ideologicamente, partiram da provocação verbal pra
agressão física em um empurrão e um chute. ficamos de pé e teve um
princípio de confusão que, de nossa parte, não foi além de dizer que não
iríamos tolerar agressão e pedir que fossem embora. saíram resmungando
alguma coisa e desceram em direção aos arcos, e nós, nos abraçamos em
grupo, tentando entender o que havia acabado de acontecer.
minhas pernas tremiam. lembro que pelo meu corpo subia o sangue quente
que fazia minhas mãos queimar como fogo. gritei como um louco! ninguém
esperava por isso, não naquele lugar; só que não era o fim... coisa de
minutos depois, eles voltaram em bando. eram 10, 12, 15 caras com eles,
ninguém sabe direito, foi muito rápido.
nós estávamos ainda de
costas para a rua quando um daqueles caras que chegou primeiro foi logo
dando um soco na cabeça de um amigo. no meio da rua, vinham mais três ou
quatro, e um grupo maior vindo mais atrás pela calçada da joaquim
silva. gritei CORRE!
descendo pelo beco da teotônio, xxx
conseguiu escapar, enquanto corria de costas se defendendo, à procura de
qualquer ajuda; de amigos, que a essa hora deveriam estar no bar da
cachaça; ou da polícia e da guarda municipal, mas sem sucesso. tanto
porque não havia ninguém conhecido, quanto porque, no posto da GM, perto
do circo voador, riram dele dizendo que mandariam um carro pra lá, que
nunca chegou.
outro amigo nosso caiu no chão do primeiro
ataque, sendo chutado por quatro ou cinco caras. pulei no meio dessa
roda, girando enquanto também batia e tentava defesa, mas fui puxado e
rasgaram minha camisa. tomei vários chutes, socos nas costas, na face e
na cabeça. esse amigo foi arrastado do bueiro até o outro lado do beco
sem deixarem de espancá-lo por um minuto, eles chutavam na cabeça!
mais acima, perto do bar, uma mulher achou que ajudava colocando um
pedaço de pau na mão do terceiro amigo. quando viram, ficaram mais
loucos ainda, partiram pra cima dele sem dó, que atingiu um deles sem
muita força. depois corremos juntos em direção aos arcos, mas antes
mesmo de chegar na altura do prédio em obra, atiraram o pau e pedradas.
resistimos e continuamos a correr na joaquim silva, quando um cara na
esquina, aparentemente aleatório, tomou a nossa frente e chutou nossas
pernas pra gente cair.
tudo era difícil: correr, fugir, sobreviver, proteger, reagir, pedir ajuda. tudo era uma luta.
só senti falta na hora de gente pra ajudar a conter aquele massacre.
eu desci por aquela rua do depósito que dá na pizzaria guanabara com
gente ainda me seguindo, então cruzei a rua em direção aos arcos da lapa
e encontrei o xxx já voltando da guarda municipal. quando ele me
contou do descaso, avistei um carro da GM na riachuelo e, no meio do
trânsito, corri pra cima pedindo urgência. voltamos pra joaquim silva,
subindo pelos arcos, achando que a guarda vinha logo atrás. que nada!
bem no meio da rua estavam eles em estado de alerta.
um amigo
conseguiu fugir sozinho; outro, soube depois, teve ajuda de uma senhora
que é do local e foi com ele até perto da sala cecília meireles,
oferecendo socorro e dinheiro pro táxi. logo depois avistamos os dois
amigos já juntos perto de onde tem aquela placa de reurbanização da
lapa. demos um jeito de sair rápido desse local e fomos tentar ajuda na
guarita da PM ali do lado... não tinha ninguém, éramos nós por nós
mesmos, como é na real.
nos abraçamos e cuidamos uns dos
outros. dois amigos ficaram tão mal do espancamento que não puderam vir
comigo e com o xxx pra delegacia, onde, aliás, foi outra luta.
três horas de espera pra fazer um registro envolvidos em todo um
tratamento, diálogo e representação que dão conta da falência do estado e
suas instituições públicas medievais, de segurança, e não só,
engessadas e incapazes de compreensão, acolhimento e defesa. apesar
disso, insistimos.
insistimos por saber que são esses registros
institucionais, esses indíces, que são levados em conta na hora de se
fazer as leis. por saber que o silêncio, ainda que caro, é conivência, é
derrota e espaço pra reprodução do terror e do medo. e não é por outra
razão que manifesto esse relato. e no entanto, somos menores do que o
fato ocorrido.
por isso eu quero que meus amigos saibam, quero
que minha família saiba, quero que meus parentes e colegas de trabalho
saibam, quero que todo mundo que me conheça, saiba: eu, xxx,
fui vítima de homofobia. que os fatos sejam sabidos: pelo governo, pelo
direito, pelas artes, pela mídia. quero que saibam, do comerciante ao
frequentador.
quero, porque é algo que perpassa todas essas
sociabilidades, e que precisa ser atravessado de todas as maneiras. é
preciso que se pense, que se discuta, que se afete, que se questione,
que se sinta, é preciso saber que uma ideia é uma arma, e que mata!
é preciso também que a gente se afirme sem se fechar — que não
sectarize, emancipe — todos: negros, mulheres, gays! todas as lutas,
identidades e devires do eu-além-do-sujeito, porque é uma luta pra SER,
todo dia! e só SER é sempre muita coisa.
portanto, que saiamos
desse lugar fácil de vitimização, paranoia e medo, e afirmemos a
potência dos últimos encontros e das coisas que tão rolando, é a nossa
resistência! é o movimento que gera essa crise que pode gerar mais
movimento.
eu levei esses três dias me recuperando, indo da ira
e do desejo de destruição, de matéria e símbolos, ao estado de
tranquilidade e paz interior, alimentando meu corpo, ouvindo as pessoas,
me fortalecendo, mas o todo tempo pensando no que a gente pode fazer
com isso. fazer do ato de ódio uma infantaria amorosa na joaquim silva!
acho que é hora de acionar as redes e levar um pouco de amor praquele
lugar hostil. é isso, ou vamos continuar dizendo à mulher estuprada que a
culpa na real foi dela? é isso, ou o medo daqui em diante de mostrar
nossa afetividade na rua?
não me interessa a segurança da minha
casa, o vidro fechado, o carro blindado, condomínio isolado, a paz do
gueto. eu quero reclamar esse espaço que é a rua, porque, se não velho,
nada disso faz sentido. eu não acredito, ou não quero acreditar, que é
assim mesmo, que tome cuidado e que fica por isso. no último sábado, na
lapa, eu não apanhei sozinho!
apanhamos todos!
há
sinais de uma mudança política no espaço, fruto de uma política maior
que o afeta; tudo sintomático numa conjuntura que nada deve
desconsiderar, desde as coisas mais ou menos explícitas, como o que
houve na sexta-feira da paixão com o bloco rec!clato (quando os meninos
da escada censuraram a intervenção) — pode ser lido aqui: https://www.facebook.com/note.php?note_id=421741827839561 — até as mais sutis.
agora, em proposição e resposta, queremos ouvir as redes! queremos um
encontro nosso na Praça dos Arcos da Lapa, já no próximo sábado, dia 28, com
intervenção de arte e política (desculpar a redundância), choque de amor
e espaço aberto pra performance, pra conversa, sei lá, pensar mil
maneiras de ocupar o espaço, intervindo e dialogando com a rua.
e que nisso houvesse a presença de amigos, frequentadores, todas as
redes e coletivos e afins, porque não há dúvida de que a gente precisa
se fortalecer, tipo matilha, transversalmente.
TODOS fomos violentados!
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