quarta-feira, 15 de julho de 2009

DIGNIDADE, RESPEITO, IGUALDADE - A árdua e longa construção da efetividade e eficácia dos Direitos Humanos

Em A Invenção dos Direitos Humanos – Uma História, a historiadora Lynn Hunt demonstra como foi sendo elaborada a convicção de que os humanos, simplesmente por serem humanos e não mais pela classe, origem, sexo - inclusive orientação sexual e identidade de gênero - etc., são dotados de um conjunto básico e fundamental de direitos que não podem (e não devem) ser desrespeitados (Companhia das Letras, 2009).

Segundo ela, o desenvolvimento da empatia – a percepção de que o Outro é um semelhante, portanto, passível das mesmas dores e dissabores que nós – teve papel fundamental nesse processo, iniciado no século XVIII.

Os primeiros textos legais a empregar as características inafastáveis dos Direitos Humanos – o seu caráter natural (não divino), a igualdade e a universalidade - foram a Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, em 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, fruto da Revolução Francesa.

Processo longo, árduo e até mesmo sangrento em diversos momentos, a lenta e conflitiva transformação nas mentalidades permitiu que novas compreensões pudessem surgir, juntamente com novos tipos de sentimentos (Hunt, 2009, 33).

Assim, o desenvolvimento da “identificação imaginativa”, isto é, a capacidade de se colocar no lugar no outro e imaginar aquilo que o outro sente – empatia, “simpatia”, solidariedade ou compaixão -, foi tornando possível aos humanos perceber o quanto despropositado, imoral e indigno era, por exemplo, a escravidão, a tortura, os castigos humilhantes, a inferiorização das mulheres, dos negros, das crianças, dos pobres...

Poder se ver no Outro tornou possível idéias como livre determinação (quer dizer, autonomia, liberdade) e inviolabilidade (física e moral - respeito à dignidade pessoal, repúdio a qualquer forma de humilhação ou agressão corporal).

Iniciado em meados de 1700, foi no século XX que a idéia de igualdade entre todos os humanos se fixou como um valor absoluto, inegociável, ampliando destinatários dos direitos políticos, civis e sociais, fortalecendo a noção de solidariedade e de equidade social (Renato Lessa, Revista Cult nº 135, p. 57).

Ocorre, porém, que, como dito, reconhecer o Outro como semelhante, como um igual, dotado dos mesmos direitos que nós, depende de que sejamos capazes de nos identificar com esse Outro. Se não somos capazes de perceber o Outro como “um de nós” não conseguimos sentir dentro de nós nenhuma referência positiva de ligação a ele.

Apenas percebido pela via do estranhamento, de um estranhamento desqualificador – seja pelo local de residência (“tu mora mal, hein?”), seja pelo sotaque (“Paraíba!”), pelo time que torce, pela cor da pele, formato do rosto, tipo de cabelo (“gringo!”), pelo que possui (“eu tenho, você não tem!”) divindade em que acredita ou não, idade (“aborrecente!”, “velhote!”, “cacura!”) etc. – o Outro deixa de ter a sua humanidade considerada. Vida, liberdade, dignidade tornam-se, a partir desse olhar que afasta e desfigura, valores não inerentes a ele, como são a mim.

Tal forma de se relacionar com determinados tipos de diferença – as diferenças estigmatizadas –, moldada que está no binômio superioridade x desqualificação, ao invés da noção da igualdade universal entre todos os humanos, propicia o surgimento de atitudes e comportamentos predatórios, cruéis, semelhantes àqueles vigentes nas épocas mais sombrias da história.

Através desse não-reconhecimento – esse não ver a humanidade do Outro –, sinto-me autorizado a não apenas afastá-lo, mas, inclusive, a agir no sentido de eliminá-lo – seja pela via da humilhação pública e contínua, seja pela tortura e morte. Tais práticas de afastamento e eliminação do portador de diferença tida como desqualificável também produzem em seus autores um sentimento de prestígio (“melhor do que”; “superior a”) e, consequentemente, segurança (Ver: Norbert Elias e John L. Scotson, Os Estabelecidos e os Outsiders, Ed. Jorge Zahar, 2000). Por meio delas, afastam-se medos e incômodos; atrações e curiosidades.

As maneiras de ver e lidar com diferenças pessoais tidas como inferiorizantes, de tão costumeiras, são tidas como “naturais”, imperceptíveis quanto à sua profunda vinculação com concepções primitivas, inconciliáveis com os valores da democracia e do republicanismo (ver A Dominação Masculina, de Pierre Bourdieu, Ed. Bertrand Brasil, 2007).

É assim que vemos irromper justificativas, após crimes bárbaros, as mais absurdas, fundadas sobre o desprezo diante de determinadas diferenciações entre os humanos, embora os 61 anos da Declaração dos Direitos Humanos, elaborada pela ONU e os 21 anos da nossa “Constituição Cidadã”.

Embora já tenha se passado três séculos desde que se começou a compreender que todos tem direito à existência digna, à liberdade, à autodeterminação, não raro encontramos comportamentos que beiram a irracionalidade completa – “pensei que era um índio”; “pensava que era uma prostituta”.

Não menos absurdos e injustificáveis, encontramos também, ainda, aqueles que tentam convencer que zombaria (ataques depreciativos, escárnio, humilhação pública por meio de “gracejos”) é o mesmo que humor.

Pois não é que nos dias de hoje, embora todos os avanços e publicização das lutas pelos direitos humanos, ainda existem pessoas que, apesar de possuírem mediano nível de informação e até elevado nível econômico, tentam nos fazer crer que ridicularizar e escarnecer publicamente alguém constitui humor - ato legítimo e inocente, capaz de divertir e curar, fortalecendo o sistema imunológico (Ver: Mente & Cérebro, nº 198, 36-43, especialmente 42-43).

Para tais pessoas, ao que parece, é tão difícil compreender a diferença quanto era, aos defensores da escravidão, da “natural” inferioridade das mulheres e da desumanidade de negros, índios e demais povos nativos, reconhecer-lhes o direito à dignidade.

Impossibilitados de se identificar com o Outro, incapazes de sentir empatia ou solidariedade ante traços de diferenciação aprendidos como não merecedores de respeito, sentem-se legitimados a operar cotidianas práticas de aviltamento, como se nenhum dano (moral, psíquico) decorresse de suas ações – seja porque é “loura”, nordestino, pobre, estrangeiro, ubandista, candomblecista, ateu, homossexual, prostituta, doméstica.

Embora, paradoxalmente, já tenham conseguido compreender que determinados diferenciadores outros não podem mais impunemente continuar a ser alvo de humilhação e achincalhe – negros, judeus e deficientes físicos, por exemplo.

Sabemos que as mentalidades não se transformam de modo uniforme nem de um só tempo. É necessário, sobretudo, muita informação – sejam dados históricos, sobre comportamentos distantes no tempo, mas profundamente assemelhados no padrão cultural da intolerância ante a diferença, sejam dados médicos e psicológicos, informando sobre os efeitos sociais nefastos (incitação à violência, à intolerância, ao desrespeito, baixa autoestima, depressão, suicídio).

Mas, também, são necessários instrumentos legais sancionadores de tais condutas, capazes de inibi-las com eficácia – como foi com o racismo, o antisemitismo, os castigos corporais.

Pois, como temos visto diariamente, a Constituição e os Códigos de Ética profissionais somente não tem sido suficientes na superação de tais mentalidades que se mantem presas numa visão deformada – do que seja respeito, dignidade e mesmo responsabilidade pessoal pelas consequências dos próprios atos.

É por isso que lésbicas, travestis, transexuais, gays e bissexuais, juntamente com todos os brasileiros e estrangeiros aqui residentes, comprometidos com a efetivação da democracia e dos direitos humanos em nosso país tem lutado pela aprovação do projeto de lei que iguala a homofobia ao racismo.

Para que não mais vejamos em nosso país jornalistas desrespeitarem a memória de um morto como fizeram com Andréa Albertine, a travesti que ficou conhecida pelo envolvimento com o jogador Ronaldo Fenômeno; para que não mais vejamos veículos de comunicação tratarem travestis como trataram Andréa quando da divulgação do caso.

Para que não continuemos a ver programas como o do Faustão, onde gays são referidos sempre de maneira pejorativa, zombeteira, negativa.

Um comentário:

O VIADO E A TRANSGRESSÃO POÉTICA disse...

Enfim, para que sejamos um pouco mais felizes, né? Eu preciso confiar no meu próximo, não posso continuar vendo nele um inimigo mortal....
Beijo,
Ricardo
aguieiras2002@yahoo.com.br