Acabo de escutar, atraves da Band News FM, maiores detalhes sobre a história do casal de Curitiba (PR) que, na maternidade, após procedimento de fertilização assistida, tendo gerado trigêmeas em 24 de janeiro último, rejeitou uma das filhas, insistindo em apenas ficar com duas das crianças, tentando abandonar a terceira no hospital.
A matéria transmitida trouxe a fala do médico, que afirmou haver prestado ao casal, antes do procedimento, informações claras e precisas sobre as possibilidades (índices estatísticos) de ocorrência de gestações individuais, de gêmeos e de trigêmeos.
Um empregado da maternidade, que teve sua identidade e registro vocal preservados pela emissora, declarou que os pais apenas visitavam as duas crianças que haviam “escolhido” ficar. Porém, quando perceberam que uma das escolhidas apresentava disfunção cardíaca, o pai pretendeu trocá-la por aquela outra que haviam rejeitado. Segundo o servidor, eles apenas queriam crianças “saudáveis”.
Ainda segundo a matéria radiofônica da Band News FM, o casal, apesar das intervenções profissionais de psicólogos e assistentes sociais, manteve-se irredutível em seu desejo de apenas levar duas das três crianças que gerara. Em razão disso, a equipe hospitalar procedeu à comunicação do fato às instâncias jurídicas competentes do Estado, impedindo o casal de retirar quaisquer dos bebês, que agora se encontram acautelados institucionalmente perante o Conselho Tutelar de Curitiba.
Finalizando, a locutora declarou que a emissora de rádio tentou contato com a advogada do casal, mas que esta não quis gravar declarações; limitando-se a informar que o casal já se arrependeu e iniciou procedimentos objetivando recuperar o direito de guarda e o poder familiar sobre todas as suas filhas. Segundo informado pela jornalista, o custo de um procedimento de fertilização assistida é da ordem de dez mil reais.
Embora não tenha sido divulgada a idade desses pais, passado o impacto inicial que uma tal notícia, por inédita, pode nos provocar, ao refletirmos um pouquinho mais detalhadamente sobre o assunto podemos perceber que não se trata de algo da ordem do absurdo ou do aberrante. Senão, vejamos.
É cediço o quanto, nessa ordem econômica e política em que nos encontramos a viver, a mercadoria, o consumismo, assumiram posição de norteadores de nossa existência, da nossa forma de viver e entender o mundo. Nesses tempos de exacerbação consumista, uma criança aprende a desejar “Coca-Cola” antes mesmo que aprenda a falar; aprende a reconhecer a sua logomarca nas ruas, nas lojas, e pedir aquilo que, através da televisão e de seus próprios pais, aprendeu a querer em lugar da água e dos sucos de fruta.
Recordo-me que, sábado passado, encontrei uma senhora apreensiva no ponto do ônibus, pedindo informações sobre como chegar na Barra da Tijuca – estávamos no Centro da Cidade do Rio de Janeiro. Tentando instruí-la sobre os diversos itinerários e meios de transporte (coletivo e de massa) que poderiam lhe fazer chegar até lá, contou-me que necessitava ir a um Shopping, comprar “um vestido da Barbie” para a sua neta, que fazia aniversário, pois não encontrara pelas imediações. – Não pude deixar de pensar, na ocasião, sobre a ditadura a que nós voluntariamente servimos e inocente e amorosamente educamos nossos filhos, netos e sobrinhos a servir: a da mercadoria. Seu papel central em nossas vidas é de tal ordem que fazia aquela senhora atravessar toda a cidade, num percurso de aproximadamente hora e meia de ônibus, para, em seguida, procurar um shopping que sequer sabia qual era (num bairro que possui vários) e, nele, procurar uma loja que tivesse o tal “vestido da Barbie”.
Recordo-me, ainda, de uma colega de trabalho me contar que um de seus filhos cismara de querer um relógio “de marca” (não me recordo agora o nome da dita marca) que, segundo ela, tinha um preço absurdo. Diga-se, para esclarecimento, que minha colega é pessoa que igualmente gosta de “estar na moda”, cada dia apresentando-se ao trabalho sem repetir roupa uma vez sequer; trocando bolsas e calçados de forma aproximadamente volátil. Assim, para que ela própria tenha considerado o preço do relógio de pulso pretendido pelo filho um absurdo, imagine-se o quanto custava... A minha colega, porem, incapaz de dizer ao filho que não parecia razoável dispender tal volume de dinheiro para um simples relógio de pulso que, inclusive, poderia vir a ser roubado, preferiu dizer que não tinha dinheiro. O menino não pestanejou: em alto e bom som retrucou, na loja, perante a vendedora, que a mãe tinha, sim, dinheiro, pois havia acabado de vender um apartamento e que, portanto, podia perfeitamente comprar-lhe o relógio desejado. Enfurecida, mas controlando-se para não explodir (afinal, "não ficaria bem"), disse-lhe que o pai é quem resolveria. Resultado: - O pai saiu com o menino e lhe comprou um outro relógio de pulso, desta vez bem mais razoável, que custava "apenas" hum mil e quinhentos reais!
Ora, no interior desse ambiente social, econômico e político regido pela lógica da mercadoria no qual nos encontramos - onde se tornou corriqueiro recorrer-se a um sem número de procedimentos médicos para atender à enorme variedade de manifestação de nossa vaidade, desejo e fantasia – o que haveria de tão absurdo no comportamento apresentado por esse casal de Curitiba?
Afinal, como tantos que se utilizam do mesmo recurso, ele apenas decidiu produzir sua prole segundo uma lógica que em nada guarda dissociação com a lógica mercadológica. O casal decidiu ter um bem (a prole); foi até à “fábrica”, munido dos insumos necessários (matéria prima e capital); comprou o serviço, pagou o preço e esperou o “produto”. Na “entrega”, decidiu que a quantidade de bens produzida não estava de acordo com o “pedido”. Optou, assim, pelo descarte de uma das unidades produzidas, pois o interesse era de obter apenas duas unidades do “produto”. Durante essa fase, foi constatado o mal funcionamento de um dos “produtos”; era necessário, portanto, que se realizasse a troca por aquele outro, excedente e em vias de descarte, mas que apresentava perfeitas condições aparentes de funcionamento.
- Qual a diferença de fundo entre essa atitude exibida pelo casal após o parto e aquela que é diariamente praticada pelos médicos e casais no âmbito das clínicas de fertilização assistida, quando decidem manter congelados os excedentes dos óvulos fecundados?
A diferença, ao que se conclui diante dos comportamentos vigentes, parece repousar na escala; é da ordem do tamanho dos “produtos” gerados com a intervenção:
Os óvulos excedentes fecundados (que não são poucos!) não causam nenhum questionamento social de ordem ética, dado que resumem-se em vidas em escala ainda celular.
Já os bebês paridos são vidas em escala por demais visível (e audível!), capaz, portanto, de provocar comoção, de produzir reações emocionadas, sanções jurídicas e sociais.
Já os bebês paridos são vidas em escala por demais visível (e audível!), capaz, portanto, de provocar comoção, de produzir reações emocionadas, sanções jurídicas e sociais.
Sanções que, entretanto, inexistem quando a escala se mantém no âmbito do celular, embora, lá como cá, mantenha-se dentro do mesmo raciocínio do mercadológico; da mesma lógica fabril.
O grau de nossa hipocrisia e alienação ética é de tal monta que setores da sociedade se insurgem veementemente contra o direito ao abortamento de fetos anencefálicos e ao direito (eu disse direito - faculdade, prerrogativa, não obrigação!) ao aborto, ao mesmo tempo em que quedam silentes, impávidos, ante o exército de óvulos fecundados (fetos potenciais) que se encontram congelados indefinidamente nas clínicas de fertilização assistida.
Diante dessa lógica fabril , econômica e mercadológica, resulta coerente que um casal tenha uma tal reação diante dos rebentos cuja produção encomendou (e pagou!).
Nenhum comentário:
Postar um comentário