Para essas igrejas espúrias, iníquas, propagadoras do ódio, da discriminação e do preconceito, assim como para esses políticos cínicos, hipócritas e irresponsáveis, dou-lhes o meu cântico indignado:
JULGA-ME, SENHOR
(Fundo Musical: Um Dia no Amazonas, de Naná Vasconcelos)
(A Defensoria Pública e ao Ministério Público)
Abre, Senhor, Tua boca, e julga!
E Faze a Justiça necessitada!
Se é verdade que seja eu o mais brutal,
o mais rude dentre todos,
então também é verdade que
não tenho entendimento,
nem sensibilidade, nem solidariedade,
nem compaixão.
Nem aprendi a lutar desesperada e veementemente
quando ao redor a ventania a tudo derrubava.
Nem aprendi a crer na honradez pelo trabalho próprio;
nem constituí minha caminhada uma estrada de fé
e esperança no humano,
transferindo o gozo do vinho, dos sorrisos,
das viagens, para depois de aberta a picada.
Se toda minha palavra é dura e escarnece a ferida,
também é verdade que, como águia no céu,
persegue o suave caminho pelo mar,
revelando os escolhos.
Se sustento a pisada
quando ao meu lado me batem o pé
é porque sustento o Teu nome – e o Meu –,
filho Teu que Sou, Centelha Tua,
a fluir e exigir-me digno de Tua Herança.
II
Se não aprendi a formosura das doces palavras,
é porque duas coisas me exigiste:
“Alonga de ti a arrogância
e a mentira”.
E assim, impondo-me observar-Te as leis,
procurei conduzir os meus e
fazer o meu caminho Teu espelho.
Se em mim não se faz ouvir
o equilíbrio da suavidade,
da meiguice codificada em signos de mercancia,
é que também, desde os tempos idos,
já não se ouve Justiça, Eqüidade, sossego.
Não, Senhor, não aprendi a sabedoria
da mesa e do vinho dos que estabeleceram
todos os contornos da aceitabilidade civilizada.
Não, Senhor, não aprendi tal sabedoria.
Mas tão só o conhecimento das
enchentes nas madrugadas,
que entra destruindo tudo, a castigar e a sucumbir
todos aqueles que não retiverem no espírito
a alma do soldado que dorme em constante vigília.
A cultura que me toca
é a legião de abandonados pelas ruas:
sem casa, sem emprego, sem escola e sem comida.
A produzir com suas mãos o bolo cozido
no fogo do abandono e da indiferença.
Lábios que zombam, bocas que segregam,
olhos que se fazem cegos...
Eis que de meus pés afloram
botas esculpidas em de barro.
O mesmo que – dizem – Tu nos fizestes.
O mesmo barro que ocultamos pressurosamente,
recobrindo-lhe onde passe,
com concreto, exclusão e betume, a sufocar
toda e qualquer semente.
III
Busquei sempre reter em mim e nos meus
o respeito às Tuas e às nossas Leis.
E amoldei os meus
- como meu pai a mim e a meus irmãos
e meu avô a meu pai e a meus tios.
E fiz erigir dentro de cada um dos meus
a altivez pelo trabalho próprio,
a dignidade pela observância das leis,
o respeito absoluto pelo que é do próximo.
Hoje me encontro a perguntar:
- Senhor, de que valeu?
De que valeu, Senhor, se no mundo
nem eu nem os meus
têm encontrado adequação?
Se seguir os ensinamentos Teus e dos antigos
é como falar numa língua esquecida e estrangeira?
Como manter os meus vivos e lúcidos,
se também aqueles que devem julgar
fazem-se insensíveis à sua responsabilidade?
Como, Senhor, convencer a esses jovens,
cujo sangue por Justiça ferve nas veias,
de que deverão permanecer a esperar
indefinidamente,
sem nunca verem-se saciados?
A fome e o frio não sabem esperar, Senhor.
Mas a miséria alheia só incomoda como opróbrio da
opulência (desavergonhada e ignóbil,
que apropria-se sem remorso do dinheiro de todos.)
Então, para silenciar a denúncia
palpável e ambulante que é,
queimemo-la.
Já que de nada vale, de nada serve, que nada é.
...De que vale a vida?! - Queimemo-la, pois.
Queimemo-la, para que depois,
uma Toga venha a branir com sua espada
estrábica e manchada que
não havia maldade; não havia intenção;
não havia malefício.
No entanto, disseste:
“Eis aqui o meu servo a quem sustenho.
Pus sobre ele o meu Espírito e ele promulgará
o Direito para os gentios. Não desanimará
nem se quebrará até que ponha na terra o Direito.”
IV
Por muito tempo estive calado, Senhor.
Permaneci em silêncio e me contive,
acreditando que não me cabia julgar as leis
e menos ainda os Homens da Lei.
E, assim, obediente,
cuidei de cumprir a minha parte.
Agora já não posso mais.
Não posso mais, Senhor.
E por isso eu grito:
Enaltecemos a Lei e fizemo-la grandiosa
pela sua observância cotidiana,
em agrado à própria Justiça.
E o que temos, Senhor?
- Um povo roubado, saqueado,
aninhado em cavernas à beira das estradas,
por sob os viadutos...
Que caminha em procissão de um lado para outro
em busca de chão, mas são tocados como presa.
E ninguém há que os livre.
No entanto reza a Tua Lei:
“O proveito da terra é para todos.”
“Boa e bela coisa é comer e beber
e gozar cada um do bem de todo o seu
trabalho, com que se fatigou debaixo do sol.”
“Ó vós, todos os que tendes sede,
vinde às águas. E os que não tendes dinheiro,
vinde. Comprai e comei. Sim, vinde, pois.
Comprai sem dinheiro e sem preço
vinho e leite.”
Onde o trabalho, Senhor?!
Onde o salário digno?,
contrapartida eqüânime do suor de nossas mãos
ou da fadiga de nossa mente?,
remuneração mantenedora da dignidade
dos meus e de todos?
Como é, pois, Senhor, possível
permanecer obediente e confiante,
vendo ao lado tanta morte,
tanta fome, tanto desamparo?
Como crer e obedecer as Leis e a Justiça,
se a mesma Lei e Justiça voltam-se contra nós,
em desagrado às Tuas palavras?
em desagrado a mais elementar de Tuas Leis?
________________
Referências:
Eclesiastes, 5:9.
Eclesiastes, 5: 18.
Isaías, 55: 1.
Provérbios: 31:8, 9. 30: 2, 7, 8.
Eclesiastes, 5: 19.
Tiago, 2: 1 a 3; 5 e 6. 4:11 e 12. 5.
Isaás, 1:6; 2:16 e 17; 42:22.
Poema oriundo de Samdhyâ - A Primavera do gerúndio e outras estações, ed. da autora, 2004.
http://comerdematula.blogspot.com/2010/04/o-vaticano-continua-o-mesmo.html
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