Por Rita de Cassia Colaço Rodrigues (originalmente publicado no Observatório da Imprensa em 14/02/2012, edição 681, rubrica "Homofobia e chatice")
Carlos Brickmann, em texto intitulado “Homofobia e chatice – Olha a cabeleira do Zezé”, publicado na edição 677 do OI, rubrica Circo da Notícia, em 17/01/2012, se dedica a opinar sobre o que lhe parece uma tendência atual – se estaria a ver manifestação discriminatória em face da orientação sexual de forma intensamente generalizada.
O jornalista, que se refere à homofobia como “discriminação racial” (?!), se insurge contra um artigo que também curiosamente não identifica, preferindo ao seu autor fazer referência como “um desses intelectuais com gavetas cheias de diplomas e uma cabeça vazia de ideias e raciocínio”. O artigo incógnito, ainda segundo o jornalista, criticaria o estilo estereotipado de homossexual (“a bicha louca”) veiculado no folhetim em cartaz na Rede Globo e também o ator que o representa, Marcelo Serrado, por haver declarado não desejar que sua filha de sete anos visse na televisão um beijo entre dois homens. Brickmann se insurge contra a conclusão do autor criticado e não declinado: “para o professor-mestre-doutor-sabe-tudo, também é homofobia” [a posição do ator quanto ao caráter inapropriado de um beijo entre dois homens para a sua filha de sete anos].
Para fundamentar sua tese de que andam a exagerar nas denúncias de discriminação aos LGBTs, o jornalista também traz dois argumentos. O primeiro, que o personagem construído pelo ator está de acordo com o modo que foi concebido pelo seu autor, o jornalista e escritor Aguinaldo Silva. No segundo, Brickmann sustenta que o fato de Aguinaldo haver participado do conselho editorial do jornal Lampião da Esquina (1978-1981), um dos eventos fundadores do movimento homossexual brasileiro, ainda em contexto do regime de exceção, lhe proporciona imunidade em relação a suas atitudes em relação à homossexualidade. Em outras palavras, o jornalista entende que o simples fato de Aguinaldo haver atuado da edição desse jornal o coloca acima de quaisquer questionamentos quanto aos seus posicionamentos em relação às homossexualidades.
Teses no movimento social
Privada pelo jornalista de conhecer o artigo criticado e tirar minhas próprias conclusões, trago alguns comentários sobre esse modo singular de argumentação empregado por Brickmann em seu texto. O primeiro deles é o fato – contrário à elementar noção do contraditório e da crítica intelectual – de criticar um autor e seu texto mantendo o seu nome e o título do trabalho em causa ocultos. Não é sustentável a crítica que não permite ao criticado o direito de resposta e ao leitor o conhecimento sobre o que e de quem se trata. O segundo é o uso da desqualificação do autor, não nominado, como recurso argumentativo. E não se diga que o jornalista teria “poupado” o autor com o anonimato.
A desqualificação do autor como forma de refutação às suas teses é recurso que, para dizer o mínimo, contraria a regra de justiça, segundo a qual sujeitos iguais devem merecer o mesmo tratamento. O jornalista busca por meio desse recurso, obter a adesão de seus leitores. Dado que o autor não merece respeito, suas opiniões devem ser ridicularizadas. O terceiro é em relação ao próprio argumento usado para desqualificar o autor. A premissa movimentada é o disseminado preconceito contra intelectuais acadêmicos (“professor-mestre-doutor-sabe-tudo”). Esquece o jornalista, entretanto, que ele próprio ocupa lugar semelhante, mais grave em tempos nos quais prevalece a tese corporativa a transformar ofício em profissão.
O quarto diz respeito à tese proposta de que uma atitude pretérita imunizaria o ator social em relação a toda a sua trajetória. Parece-me demasiado óbvia a sua fragilidade. Mais ainda por desconsiderar, no caso concreto, os posicionamentos adotados pelo autor em causa no interior daquele movimento social. Hipervalorizar o simples fato de participar da criação e realização de uma empresa jornalística e seu produto, desconsiderando suas teses no interior do veículo e movimento social, bem como suas teses no momento presente sobre as mesmas lutas (que, ao que parece, é uma das críticas do autor criticado), parece-me francamente insustentável.
Algumas canções “inocentes”
O quinto e último refere-se à acusação que faz de “chatice”. O fato dos setores historicamente desqualificados e descapitalizados estarem fazendo-se sujeitos da história e, em nome próprio, denunciando práticas contumazes de estigmatização e inferiorização, manifestas diuturnamente e sobre as mais comuns situações. De tão disseminadas essas práticas, e pela força mesmo do modo de funcionamento da dominação simbólica, são vistas como “inocentes”, “humorísticas”, sendo não raro introjetadas e defendidas por elementos dos próprios segmentos-alvo do processo de desqualificação – caso em que o escritor Aguinaldo Silva se enquadra (BOURDIEU, 2001 e 2007). Vejam-se os seus posicionamentos contrários à criminalização da homofobia e contrário ao tratamento do beijo entre pessoas do mesmo sexo de maneira equânime ao dispensado quando entre pessoas de sexos diferentes, por exemplo.
Para sustentar sua tese, o jornalista Brickmann abre seu texto com a citação de trechos de músicas muito populares que tratam de alguns desses segmentos – judeu e negro, no caso. Como toda escolha, esta também é arbitrária e atende a um fim determinado. A saber: comprovar a sua tese de que hoje as pessoas estão muito chatas, reclamando por qualquer coisa. Resulta, porém, emblemático o fato de a escolha do jornalista haver recaído sobre dois exemplos nos quais o modo estereotipado e desqualificante aparecem de forma, digamos, suave.
Seria legítimo indagar por que não usou, por exemplo, versos como “Quero uma mulher, que saiba lavar e cozinhar / E de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar” (Emília, Wilson Batista e Haroldo Lobo, 1941); “A mulher quando é solteira / Seu perfume é água tônica / Depois de casada / É pior que a peste bubônica” (Lundu do baiano, Bolim Bolacho, autor desconhecido, 1905); “Minhas condições agora vou dizer ... / Sou empregada sindicalizada / E quero férias, quero os meus papéis / Não sou nada exigente, trezentos mil-réis / Vou querer de ordenado, pago adiantado! .../ – Então eu lhe faço uma contraproposta: / É mais negócio eu me casar consigo / Que a senhora trabalha para mim de graça!” (Cozinheira grã-fina, Sá Roris, 1939); “O homem sacode a lapela, a poeira cai / A mulher quando perde a linha / Pode lavar que a mancha não sai” (Sacode a Lapela, Mirabeau e Jorge Gonçalves, 1955); “Essa mulher há muito tempo me provoca / Dá nela! Dá nela! / É perigosa, fala mais que pata choca / Dá nela / Dá nela! (Dá Nela, Ary Barroso, 1930); “Chegaste na minha vida / Cansada, desiludida / Triste, mendiga de amor / E eu, pobre, com sacrifício / ... / Mostrei-te um novo caminho / ... / Tudo porém foi inútil / Eras no fundo uma fútil / E foste de mão em mão / Satisfaz tua vaidade / Muda de dono à vontade / Isso em mulher é comum” ( Número um, Benedito Lacerda e Mário Lago, 1939); ou o primeiro samba-enredo da Portela, em 1932, quando ainda se chamava “Vai como pode”: “Lá vem ela chorando / O que é que ela quer? / Pancada não é, já dei! / ... / Quer dinheiro / Dinheiro não há” (FAOUR, 2008).
Poderia, igualmente, ter-se utilizado de algumas das também “inocentes”: “Melô da galinha”, de Pedrinho da Flor, com alterações e interpretação de Dicró; “Rock das Aranhas”, de Raul Seixas, 1980; “Maria Sapatão”, de Chacrinha, 1981; ou o “Galo boiola”, de Gina Teixeira, 2006.
Como diz o dito popular, “Pimenta nos olhos dos outros, é refresco!”.
Referências:
FAOUR, Rodrigo. História Sexual da MPB. A evolução do amor e do sexo na canção brasileira. São Paulo: Record, 2008.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
_________. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
***
[Rita de Cassia Colaço Rodrigues é pesquisadora, Rio de Janeiro, RJ]
Comentários constantes da página do OI:
Carlos Brickmann |
Enviado em: 14/02/2012 12:48:09 |
O artigo de Rita de Cássia Colaço Rodrigues me deu muita alegria: trouxe-me a memória não só algumas letras clássicas, como Emília, como, por analogia, outras igualmente magníficas, como Amélia, de Mário Lago, obras-primas de ontem que os chatos de hoje tentam classificar como preconceituosas. Mulher, patrão e cachaça em qualquer canto se acha não é uma letra como as outras, mas é divertida. A busca de preconceito vai mais longe: já vi críticas ao Acalanto, do monumental Dorival Caymmi, porque o boi da cara preta pega a menina que tem medo de careta. Pode? Pode, né – e continuo gostando do Acalanto. Até o cantei para meus filhos enquanto eles não perceberam que minha afinação não era lá essas coisas. Quanto a não identificar autores, esta é uma característica desta coluna: fala-se do pecado mas não do pecador. Gente mais competente do que nós, como Santo Agostinho, discutiram este tema. O objetivo da coluna não é polemizar com pessoas: é falar sobre jornalismo. Concordar ou discordar, tudo bem – ainda mais quando a discordância acende tão boas memórias musicais (nem todas: tem muita coisa ruim entre as músicas citadas). Quanto a Aguinaldo Silva, desculpe, Rita de Cássia: foi pioneiro da luta pelos direitos dos homossexuais quando era muito mais difícil lutar. Foi para a briga quando isso era perigoso, quando dava cadeia, quando despertava a ira dos generais. Não o conheço pessoalmente (o que lamento), mas li o que escreveu e o que escreveram sobre ele. Merece respeito, e muito. |
Alberto Mario da Rosa |
Enviado em: 14/02/2012 13:12:03 |
Já identifiquei esta característica no Sr. Carlos Brickmann, uma certa seletividade em identificar ou não pessoas de acordo com sua "cor" política. Na época, ele me acusou de, como servidor, querer defender meu "patrão". Mas, pelo visto, nao sou o único que percebe esse víés do nobre articulista. |
Roberto Ribeiro |
Enviado em: 17/02/2012 01:14:20 |
Gente chata é gente chata. Ser chato, no caso, é defender o que todo mundo defende. Não custa nada, vc é aplaudido(a) sem ter trabalho, sem se arriscar. Nada menos arriscado hoje que atacar "homofóbicos e preconceituosos". Se a autora vivesse na Era Vitoriana, seria uma puritana. Não há diferença entre o puritanismo e o politicamente-correto, tudo é bom-mocismo barato. |
Elson Rezende de Mello |
Enviado em: 17/02/2012 21:23:32 |
Tendo a concordar com Carlos Brickmann. É evidente que essa onda do politicamente correto, de ver preconceito em qualquer manifestação ou afirmação de valores é muito mais que chatice. E no que toca à homofobia a coisa já começa a se inverter, em que ser hetero está mal visto, é afirmação de preconceito. No caso citado, do ator que não gostaria que sua filha visse um beijo gay na televisão, a comunidade gay caiu sobre o cara, que parece que agora não se pode afirmar qualquer coisa que é preconceito, e se quer cair no outro extremo, não só de se aceitar o universo gay, mas de fazer proselitismo, e até se sentir inferior por não ser da seita. A mim também me chamou a atenção com essa questão de que o Crô estaria estereotipado (como se nessas novelas não fosse quase tudo estereotipado...), quando quem escreve é um escritor gay, que conhece do que está falando, e até pelo que levantou o articulista Carlos Brickmann. Claro que essas discussões sobre homofobia têm tomado um viès raso, em que qualquer afirmação que no reze pelo politicamente correto é anatematizada. |
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