sábado, 13 de setembro de 2014

A homofobia descartada

Quando nos debruçamos para examinar os processos-crime dos anos 1980 tendo homossexuais como vítimas, constatamos abundar: ou a não remessa dos inquéritos ao juízo ou a remessa e o seu arquivamento, por ausência de elementos capazes de permitir o oferecimento da Denúncia (decorrente da atuação dos agentes públicos encarregados da esfera investigatória) ou a formulação de tese defensiva de que a vítima teria desejado forçar o Réu ao sexo passivo ou  este teria reagido a proposta de ato homossexual... Não raro essas teses prevaleciam e o Judiciário reconhecia terem sido legítimos os atos de violência e/ou a morte da vítima e absolviam os réus.

Tive oportunidade de examinar um caso bizarro em si mesmo: Tratava-se de um assalto, onde o criminoso fora preso em flagrante e com a coisa furtada em seu bolso (o relógio da vítima). Ele confessou e foi recolhido à prisão.

No curso de sua defesa, patrocinada pela Defensoria Pública, a tese apresentada em juízo foi a de que o Réu na realidade havia repudiado legitimamente a proposta de sexo homossexual com as vítimas (que não morreram, apenas sofreram cortes superficiais, decorrentes de golpes de garrafa quebrada).

O Réu tinha antecedentes penais, tendo inclusive já sido condenado com sentença transitada em julgado (sem mais possibilidade de reforma) por duas vezes, ambas em crimes contra o patrimônio.

O Juiz, em sua sentença, reconheceu que estavam comprovadas nos autos, a autoria, a materialidade e a violência (“embora comprovadas autoria, materialidade e violência exercida contra as vítimas”).

No entanto, decretou a absolvição do Réu, sustentando que " [...] trata-se da palavra da vítima, um homossexual confesso, contra a palavra do réu, cujos antecedentes criminais não recomendam, dirimida, apenas, pelo depoimento do policial testemunha", que desconfiou do réu porque já o conhecia de outra ocorrência.

Hoje o que vemos são delegados, mal preparados ou de pura má fé, negar a motivação homofóbica logo de plano, mal iniciadas as investigações, e recusar-se a requisitar exames complementares para a correta apuração do ilícito. 

E assim, atos caracteristicamente homofóbicos, pela sua dinâmica, são transmutados em latrocínio, suicídio, crime passional ou, a agora novidade do "desentendimento após sexo casual", ou o "matei porque ele queria fazer gracinha comigo".

Parece-me que resultaria revelador e oportuno solicitar a esses delegados que tornem pública a sua definição de homofobia.


Sugestão de leitura:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/09/1515698-policia-descarta-homofobia-em-morte-de-jovem-gay.shtml
http://www.correiodoestado.com.br/brasilmundo/policia-descarta-homofobia-em-morte-de-jovem-gay-em-goias/227149/
http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,governo-quer-tornar-federal-apuracao-sobre-morte-de-jovem-gay,1559385 
http://www.historia.uff.br/stricto/td/1437.pdf 
CARRARA, Sérgio e VIANNA, Adriana R. B. “As vítimas do Desejo”: Os tribunais cariocas e a homossexualidade nos anos 1980. In: PISCITELLI, Adriana, GREGORI, Maria Filomena e CARRARA, Sérgio (orgs.). Sexualidades e Saberes: Convenções e Fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p. 365-383.

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