Não vejo porque chamar o deputado Jean Wyllys de herói. Aliás, não gosto de heróis - eles costumam cobrar muito caro por façanhas para as quais a ninguém consultou se queria, cientificando previamente do preço.
Dito isso, sobre a mais recente controvérsia que o mesmo se envolveu (mais do que a simples visita a uma Universidade em Israel, as suas posições, por ele mesmo escritas e divulgadas, sem que desta feita possa alegar alguma edição truncadora de parte de jornalista qualquer) tenho a mencionar duas coisas, uma das quais já havia destacado quando o mesmo fez questão de sair a dar entrevistas em tudo o quanto fosse de veículos e falar contra o PLC 122, ciente de que estava em rota de colisão com a demanda principal dos movimentos LGBTs (colisão que ele mesmo reconheceu em uma dessas entrevistas):
1) O PSOL - partido do deputado - tem questão fechada sobre o boicote à Israel (movimento BDS). Dado que o deputado tem posição diferente, melhor que busque uma agremiação capaz de melhor lhe representar as formas de visão. O que me parece crítico é termos também entre os de esquerda, os "progressistas", pessoas afeitas a atuações em modo solo a ocupar posições de REPRESENTAÇÃO. Se não podemos saber qual será o posicionamento de um parlamentar no qual votamos e que está referendado no espaço público a partir de sua agremiação partidária, identificada pelo eleitorado precisamente a partir de suas posições assumidas coletivamente, a natureza mesma dessa REPRESENTAÇÃO torna-se prejudicada;
2) A posição adotada e defendida publicamente pelo deputado, contrariando frontalmente a posição de seu partido, mais uma vez demonstra a sua baixa aptidão para exercer a REPRESENTAÇÃO (essência da função parlamentar). A primeira vez se deu ao contrariar publicamente o posicionamento da maioria dos ativistas LGBTs, que clara e ostensivamente defendiam o PLC 122 - o deputado deliberou atuar em frontal e arrogante rota de colisão, desqualificando essa posição em entrevistas várias (neste blog encontram-se postagens abordando essa conduta, inclusive links para as entrevistas). Quem sabe, talvez, a sua dificuldade seja com a REPRESENTAÇÃO mesma. Talvez seja um ator político (um ótimo ator político, todos reconhecemos, mas ainda assim humano, tão humano e mortal como qualquer outro) que mais se identifique com a função do intelectual do que com a função do parlamentar. O que seria uma pena se ao fim e ao cabo se chegasse a essa conclusão, dado que é, sim, uma voz (ainda assim) importante em nosso Parlamento. O tempo nos dirá.
No mais, partilho o texto a seguir, não sem recomendar vivamente a leitura de SHLOMO SAND - A invenção do povo judeu:
Por Waldo Mermelstein.
Companheiro Jean Wyllys,
Hoje à noite companheiros de longa data me chamaram a atenção para seu post no facebook acerca de sua visita a Israel. Li com atenção o que você escreveu, além de boa parte das respostas que o post ensejou. Vi também que foi a convite de um amigo meu de longa data, James Green, que foi militante da mesma organização socialista (trotskista) que eu e um dos iniciadores na esquerda, há décadas, do combate pelos direitos dos homossexuais.
Sou um antigo militante da esquerda. Meus pais eram judeus, e eu cheguei a ser sionista na adolescência, rompendo com o sionismo após ter passado um ano em Israel. Por essa razão original, sigo acompanhando o tema com muito interesse. Me desculpo pela extensão desta carta, o que, entretanto, me parece compreensível pela intensidade e urgência do debate em questão. De todo modo, não me aprofundarei no tema tal como ele exigiria, afinal, esta carta é só uma carta, e não seria justo, metodologicamente, responder a um post com infindáveis laudas. Naturalmente, não tenho acordo com o que você escreveu, e acho que algumas das questões/críticas que irei colocar abaixo já foram, talvez com mais propriedade, assinaladas por outros dos seus interlocutores.
Em primeiro lugar, o tema não é entre judeus e árabes, mas entre o Estado sionista (e os que o apoiam) e a população nativa que ali habitava há centenas de anos. Infelizmente, a esmagadora maioria da população judaica de Israel apoia os aspectos essenciais em que se baseia o Estado de Israel. Não é possível se referir à situação atual sem relatar e compreender o que aconteceu em 1948, quando as Nações Unidas dividiram a região da Palestina Histórica contra a vontade da maioria da população e os sionistas aproveitaram a chance histórica para expulsar 80% da população palestina. Desde então, Israel tem continuado essa obra, se estabelecendo como um Estado judaico e democrático, um oximoro. Sugiro que faça um pequeno teste: sem falar sobre mais nada, proponha aos que estão lhe recebendo, ou às ONGs que você mencionou, que Israel comece se definindo como um estado de todos os seus habitantes, como o Brasil o é, por exemplo, não obstante todas as suas desigualdades sociais. Essa pode ser uma lição útil para você ver que não está perante um Estado como os demais, mas frente a um Estado que é legalmente racista, a começar pela sua definição e suas infinitas leis racistas. Não estou me referindo ainda aos territórios ocupados, mas às fronteiras de 1948.
Em segundo lugar, a ideia de dois Estados, independentemente de sua justiça, foi destruída pelas décadas de ocupação e colonização. Por isso, uma saída sem banho de sangue que a você e a todos seduz teria que ter como base a restituição da justiça, dos direitos espoliados dos palestinos para que pudesse haver a convivência pacífica. A base para isso é o direito internacional dos refugiados e seus descendentes que foram expulsos em 1947-8. Sei que há várias versões sobre o fato, mas a boa historiografia palestina já foi confirmada quando da abertura dos arquivos do Estado de Israel e mostra que houve uma política deliberada de expulsão em massa dos residentes palestinos. Mas mesmo que isso não fosse verdadeiro, o direito de retorno dos refugiados é inalienável. Basta ver tudo o que diz o direito internacional e as próprias resoluções da ONU da época, nunca revogadas. Então pergunte aos seus anfitriões tão democráticos se eles estão dispostos a aceitar esse direito, no marco dos dois Estados que propõem. Não quero fazer nenhum jogo, sei perfeitamente o que irão lhe responder.
Em terceiro lugar, e talvez o mais importante: siga o exemplo de Caetano, vá até à Cisjordânia, conheça as aldeias ameaçadas permanentemente pelos colonos e pelo exército de ocupação. Verás que a vida lá é só não duramente real, mas também de viés. A experiência de Caetano o levou à conclusão de que, parafraseando seu companheiro de show na ocasião, Gil, ter ido a Israel foi “necessário para [não] voltar”. Sem concordar a maioria das reflexões de Caetano em sua volta de Israel (pois mantém o erro de apoiar a solução dos dois estados, além de ter furado o boicote e seguir atacando o BDS) arrisco a dizer que as conclusões a que você chegará como parlamentar de esquerda e ativista social (não nesta ordem) serão bem distintas das que você colocou em seu post. Aliás, não por acaso, boa parte de seus eleitores possuem uma posição bem distinta do que você expressou e por razões bem fundamentadas.
Voltando ao começo da minha carta: não é verdade que o movimento de solidariedade aos palestinos se baseie no antissemitismo. A cartada do antissemitismo é uma das maiores mentiras divulgadas pelo movimento sionista. É bom saber que os sionistas nada fizeram para lutar contra o antissemitismo quando ele era importante. Em vez de se unirem aos movimentos sociais para lutar contra o antissemitismo preferiram aderir à ideia de colonizar a Palestina e negociar com todos os poderes opressores, os podres poderes de então, a começar pelo Czar de toda a Rússia, onde viviam 80% dos judeus à época (início do século XX). Há uma mais uma mancha na história dos sionistas que é o acordo de transferência de bens e pessoas para a Palestina, feito com Hitler em 1933, no momento em que a esquerda no continente tentava organizar um boicote à Alemanha. Digo isso porque como descendente de uma família que se perdeu nos campos de concentração e nas câmaras de gás me repugna a utilização falsa desse fato monstruoso. Prefiro a inteireza moral de muitos sobreviventes que sempre disseram que justamente por terem sofrido e presenciado o horror não podem ser cúmplices em uma política racista.
Por fim, você compara o BDS com o boicote americano a Cuba. Nesta lógica formal e nada dialética, você iguala a violência do escravo para com o feitor à violência deste contra aquele, ignorando que a própria escravidão já é, antes de tudo, uma própra violência. Pare para pensar e verá que a comparação entre os dois boicotes é descabida: o boicote a Cuba é pelo fato da pequena ilha ter desafiado o poder imperial. O BDS é a arma dos palestinos oprimidos por Israel e estimula a solidariedade para que os cidadãos judeus de Israel percebam que o mundo não tolera regimes como o do apartheid. Você estaria contra o boicote ao regime racista dos boers? Certamente não! A luta era para que houvesse mínimos direitos iguais entre todos os que lá habitavam. O boicote levou décadas, mas ajudou muito a que o regime racista da África do Sul caísse. Leve em conta que há várias organizações sociais na Europa e nos EUA que já aderiram ao boicote e que este é um instrumento legítimo de luta.
Não espero que concorde com o que escrevi rapidamente, mas pelo menos vá conversar, conhecer o lado dos milhões nos territórios ocupados. Foi a visão dos operários que trabalhavam em Israel e voltavam para Gaza em 1970, em um ônibus cheio deles em minha volta ao kibutz em que trabalhava, que me empurrou decididamente a romper com o sionismo, mais do que qualquer livro que li. Como disse certa feita um antigo filho de judeus, ateu e marxista Lev Davidovicht Bronstein (Trotsky), “se o papel aguenta tudo, a história não”. E a história lá não é senão a história da opressão de um Estado sobre um povo sem Estado. O resto o papel aguenta, mas o resto é resto.
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Fonte: https://www.facebook.com/waldo.mermelstein/posts/10206717037782838?fref=nf&pnref=story
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