A polêmica da hora, inócua (pra variar!), mal conduzida e, uma vez mais, fratricida (porque apenas contribui para a apartação de atrizes, atores e grupos que lutam pela cidadania universal e contra a discriminação), está sendo travada a partir de uma dificuldade de escuta, em minha percepção.
No dia primeiro de dezembro a Folha de São Paulo publicou o texto opinativo da mestra em filosofia política e ativista do feminismo negro, Djamila Ribeiro, sob o título "Nós, mulheres, não somos apenas 'pessoas que menstruam'", sob a rubrica "machismo". (Você pode ler o texto aqui, ou aqui)
Os ativistas trans, claro, reagiram, respondendo ao equívoco da pensadora. (Vejam, por exemplo, as postagens, no Instagram, da Abeth, do Fonatrans, do Ibrat, do Famílias pela Diversidade etc.)
Em seu arrazoado Djamila, em minha percepção, se esquece de atentar para o contexto de produção e uso da expressão em causa ("pessoas que menstruam"). A expressão se cinge ao campo das políticas de saúde, onde homens trans, portadores de corpos com úteros, são invisibilizados - a medicina (e a medicina pública, via SUS) não contempla as especificidades das pessoas trans, sejam homens ou mulheres.
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https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/djamila-rebate-acusacao-de-transfobia-em-artigo-as-pessoas-nem-leram-o-texto/ |
Mas Djamila deliberadamente preferiu ignorar esse contexto. À semelhança dos juízes que, entre os anos de 1980 e 1990, não conseguiam conceber as mulheres trans, porque elas não tinham útero e, portanto, não podiam procriar, Djamila não consegue compreender que a expressão não guarda relação necessária com as mulheres cis, ao contrário!
Djamila prefere se evadir do contexto de produção da expressão - homens trans, portadores de útero, trompas e outras características dos corpos cis femininos, que são sistematicamente invisibilizados pelos serviços de saúde, notadamente os serviços públicos -. E, ostentando uma ferida narcísica, passa em seu texto a falar sobre mulheres cis.
Enquanto "pensadoras" (para usar a mesma expressão que ela) somos treinadas (ou deveríamos ser) a nos ater ao contexto de produção dos textos. - A respeito do que trata a expressão em causa? A que ela se refere? Qual o seu objetivo?
Ao nos atentarmos para esses aspectos, temos claro que não se trata em absoluto de mulheres cis. Trata-se, repito, de denunciar e romper com a invisibilização dos homens trans nos serviços de saúde, onde não conseguem ser contemplados.
Se atentasse para esse aspecto, se fosse capaz de se abrir ao outro, Djamila se solidarizaria com a luta dos homens trans. Mas, ao contrário, prefere ignorar o contexto de produção da frase e agir no espaço público a partir de sua ferida narcísica, sentindo-se apagada enquanto mulher (?!), simplesmente pelo fato de homens trans necessitarem ter as suas espeficidades corporais contemplatas pelos serviços de saúde (públicos e privados). Todo o arrazoado de seu texto se refere às mulheres cis que, em absoluto, estão em causa na expressão.
Outro aspecto que aprendemos (ou deveríamos ter aprendido) no exercício do ofício de pensar, notadamente quando no campo das ciências humanas, é, ao nos sentirmos pessoalmente incomodadas com algo, com uma afirmação ou defesa de argumento, pararmos para refletir sobre o porquê dessa afetação - o que na frase, afirmação, propositura, argumento nos afeta tão diretamente? Como nos afeta? Por que? O que mobiliza em nós?
Enquanto não formos capazes de nos abrir para a genuína escuta, para a compreensão das necessidades do outro; enquanto nos limitarmos às nossas fragilidades, temores, pânicos e ressentimentos (e a incapacidade de reconhecê-los), não conseguiremos realizar o encontro com o diferente e tão igual em suas necessidades de reconhecimento, legitimação e respeito.
Djamila, se tivesse, por um instante, procurado se interrogar a respeito do conteúdo da frase em questão, se tivesse, ao invés de dar azo à sua ferida narcísica, procurado compreender a respeito do quê se fala, da reclamação posta, e do porquê dela se sentir pessoalmente atingida, afetada, incomodada, não teria enveredado em semelhante equívoco.
As mulheres cis não são seus úteros, ao passo que os homens trans precisam ter os seus úteros e demais órgãos do "feminino" contemplados nos serviços de saúde, tanto quanto as mulheres trans precisam ter a sua próstata e, eventualmente, o seu pênis e escroto, contemplados no atendimento médico.
- No que isso invisibiliza as mulheres cis? Em outras palavras, no que isso, essa reivindicação das pessoas trans, afetam ou ameaçam (?!) as pessoas cis? No que a demanda (legítima) das pessoas trans para se verem contempladas em suas peculiaridades fisiológicas nos serviços de saúde desestabiliza a identidade das mulheres cis enquanto "mulheres"?
Do mesmo modo que a expressão "homens que fazem sexo com homens" não invisibiliza os gays/homossexuais masculinos, as expressões "pessoas com pênis/próstata", "pessoas com úteros", "pessoas que menstruam", "pessoas que amamentam", "pessoas gestantes" não invisibilizam homens ou mulheres cis. Porque não diz respeito a eles! Simples assim.
É preciso ser muito autorreferente (ou ter a própria identidade de gênero bastante frágil) para supor que tais expressões digam respeito aos homens ou às mulheres cis.
E isso em absoluto não é a função das pessoas "pensadoras", vale dizer, das profissionais cujo ofício é refletir criticamente sobre a realidade, sobre a história. A nossa função precípua é, antes do mais, sermos capazes da escuta do outro, em suas demandas e idiossincrasias, assim como das nossas próprias. - O que exige um esforço constante, tenaz e, invariavelmente, doloroso, na medida em que afeta a nossa autopercepção, a nossa fantasia pessoal.
(Atualização 18h13. - Fiz correções e acréscimos.)