A fala da travesti soa conformada, fatalista, sem esperança de protagonismo, de mudança. Todo dia acontece violência contra elas.
"A cada dois dias um homossexual é assassinado", dizem as estatísticas levantadas pelo Grupo Gay da Bahia, a partir de notícias de jornal e internet, recolhidas no Brasil.
Fossem fazer contagem dos crimes cometidos na Baixada Fluminense, especificamente contra travestis, decerto a estatística que apareceria seria esta: "- Todo dia acontece."
Penso isso enquanto vou assistindo aos documentários BASTA UM DIA e SEXUALIDADE E CRIMES DE ÓDIO, de Vagner de Almeida. Eles tratam da absurda violência contra o diferente; do ódio à diferença. E, no caso específico, a diferença se expressa na pessoa das travestis.
O segundo, SEXUALIDADE E CRIMES DE ÓDIO, é um réquiem pela morte de travestis que foram entrevistadas por Vagner no BASTA UM DIA e que logo depois foram assassinadas, como de costume, pelo simples fato delas existirem - uma delas, grotesca ironia, no mesmo dia e horário em que ocorria o lançamento do filme no Centro Cultural Banco do Brasil. O Diretor vai nos revelando as dimensões absurdas desses crimes, a sua absurda constância, a sua infame presença por todo o país, o descaso da polícia em sua apuração, o quanto a questão da classe e posição social são determinantes nesse consórcio de desdém formado entre o Estado e a sociedade.
O cenário mais retratado é a Rodovia Presidente Dutra, altura de Nova Iguaçu. E eu me lembro certa vez, de carro, a trabalho, passando por certo trecho dessa rodovia, o motorista aponta um imenso Shoping recém inaugurado na pista sentido São Paulo. Informa que anteriormente ali era um campo de futebol e que era comum às segundas-feiras, naquele terreno, amanhecerem corpos de travestis assassinados. Uns eram mortos ali, outros "desovados". A cena era corriqueira e se mantinha ao longo dos anos. O final de semana mais "fraterno" estampava um corpo de travesti. Nos mais "movimentados", eram três, quatro - espalhados pelo terreno descampado e até pendurados na baliza do gol. Ninguém se incomodava: "não era com eles"; não era gente "deles".
Enquanto ouvia esta narrativa do motorista, ficava a me perguntar quantos desses assassinatos teriam sido contabilizados pelo GGB, entidade que, embora com as suas deficiências, é pioneira tanto na mensuração dessas ocorrências, quanto em dar a devida importância para o assunto, remontando mesmo à década de oitenta do século passado.
Retorno ao filme. Um profundo desconforto me assola ao constatar, na maioria das entrevistadas, um fatalismo inamovível, uma "resignação cristã".
A violência é algo tão diário, tão presente, que elas passam a lidar com esse aspecto como algo "inerente" à vida e ao viver, como o sol ou a chuva - coisa sobre a qual não se tem ingerência, capacidade de ação transformadora, possibilidade interventiva.
Com que naturalidade elas falam da presença cotidiada da humilhação, do medo, das ameaças, da violência física, sexual, da morte sempre tão próxima.
Das corriqueiras experiências de práticas sexuais forçadas, muitas vezes à tapas, com o cano do revólver no rosto ou na boca, elas apenas reclamam de eles não haverem efetuado o pagamento pelo serviço auferido. É como se tivessem incorporado tais práticas como parte integrante de sua atividade profissional: sexo forçado, tudo bem, desde que pague.
Em outros momentos, são incapazes de identificar a violência presente em seus viver diários: De tão inerente, a violência chega a deixar de ser percebida, destaca o Diretor Vagner de Almeida no VIOLÊNCIA E CRIMES DE ÓDIO.
Um dos agentes sociais voluntários entrevistados comenta, impactado, que se dera conta de que elas, as travestis prostitutas, não fazem planos para o futuro; não possuem ou melhor, apagam, o registro do virá, do amanhã: as compras de alimento são feitas dia a dia e tudo o que elas querem é a possibilidade de estar vivas no dia seguinte.
Os aspectos mais humilhantes dessa nossa humana (digo humana porque frequente, não como atenuante) dificuldade diante da diferença são aqueles retratados na fala da empregada da funerária.
Ela nos relata o grau de apagamento de valores como empatia, solidariedade, fraternidade, verificados em profissionais da polícia e da defesa civil (bombeiros).
Eles se negam a tratar as vítimas e os cadáveres com a dignidade devida, exclusivamente por serem "viados", "bichinhas". Alguns corpos, de tão massacrados, precisam ser recolhidos com pás. Mas nem por isso - ou justamente por isso - os profissionais envolvidos na tarefa se recordam da humanidade a que aquele corpo, os seus restos, pertencem. Também não são capazes de se lembrar que, como eles, servidores públicos, as travestis de pista também tem quem lhes estime, se preocupe e pranteie a sua morte.
A desqualificação desferida às travestis em vida as segue além-morte - seja pelos bombeiros, seja pelo pessoal do Instituto Médico Legal. A relação desses servidores com os corpos é de criminoso aviltamento. Como se fora um amontoado de lixo pútrido, assim é procedido o recolhimento do cadáver vitimado pela bárbara e diária homofobia. No mesmo estado em que são recolhidos são tambem depositados nos caixões - nenhuma necrópsia, geladeira, nenhum preparo.
Impossível terminar de assistir a esses documentários sem pensar que, de certa maneira, essa mesma alienação nos acomete.
Também nós nos deixamos ficar indiferentes, aceitando como da ordem do imutável a contumácia dessas humilhações, terror e assassinatos macabros.
Quantas mais, travestis, gays, lésbicas - pobres, negras, anônimas -, precisarão ser trucidadas para que tomemos em nossas mãos a determinação de dar um basta nessa realidade?
Como é possível deixar-nos ficar a apenas contabilizar essas mortes do conforto de nossas casas, através de nossos computadores, principalmente agora, que uma nova onda de Caça às Bichas vem se instalando?
"A cada dois dias um homossexual é assassinado", dizem as estatísticas levantadas pelo Grupo Gay da Bahia, a partir de notícias de jornal e internet, recolhidas no Brasil.
Fossem fazer contagem dos crimes cometidos na Baixada Fluminense, especificamente contra travestis, decerto a estatística que apareceria seria esta: "- Todo dia acontece."
Penso isso enquanto vou assistindo aos documentários BASTA UM DIA e SEXUALIDADE E CRIMES DE ÓDIO, de Vagner de Almeida. Eles tratam da absurda violência contra o diferente; do ódio à diferença. E, no caso específico, a diferença se expressa na pessoa das travestis.
O segundo, SEXUALIDADE E CRIMES DE ÓDIO, é um réquiem pela morte de travestis que foram entrevistadas por Vagner no BASTA UM DIA e que logo depois foram assassinadas, como de costume, pelo simples fato delas existirem - uma delas, grotesca ironia, no mesmo dia e horário em que ocorria o lançamento do filme no Centro Cultural Banco do Brasil. O Diretor vai nos revelando as dimensões absurdas desses crimes, a sua absurda constância, a sua infame presença por todo o país, o descaso da polícia em sua apuração, o quanto a questão da classe e posição social são determinantes nesse consórcio de desdém formado entre o Estado e a sociedade.
O cenário mais retratado é a Rodovia Presidente Dutra, altura de Nova Iguaçu. E eu me lembro certa vez, de carro, a trabalho, passando por certo trecho dessa rodovia, o motorista aponta um imenso Shoping recém inaugurado na pista sentido São Paulo. Informa que anteriormente ali era um campo de futebol e que era comum às segundas-feiras, naquele terreno, amanhecerem corpos de travestis assassinados. Uns eram mortos ali, outros "desovados". A cena era corriqueira e se mantinha ao longo dos anos. O final de semana mais "fraterno" estampava um corpo de travesti. Nos mais "movimentados", eram três, quatro - espalhados pelo terreno descampado e até pendurados na baliza do gol. Ninguém se incomodava: "não era com eles"; não era gente "deles".
Enquanto ouvia esta narrativa do motorista, ficava a me perguntar quantos desses assassinatos teriam sido contabilizados pelo GGB, entidade que, embora com as suas deficiências, é pioneira tanto na mensuração dessas ocorrências, quanto em dar a devida importância para o assunto, remontando mesmo à década de oitenta do século passado.
Retorno ao filme. Um profundo desconforto me assola ao constatar, na maioria das entrevistadas, um fatalismo inamovível, uma "resignação cristã".
A violência é algo tão diário, tão presente, que elas passam a lidar com esse aspecto como algo "inerente" à vida e ao viver, como o sol ou a chuva - coisa sobre a qual não se tem ingerência, capacidade de ação transformadora, possibilidade interventiva.
Com que naturalidade elas falam da presença cotidiada da humilhação, do medo, das ameaças, da violência física, sexual, da morte sempre tão próxima.
Das corriqueiras experiências de práticas sexuais forçadas, muitas vezes à tapas, com o cano do revólver no rosto ou na boca, elas apenas reclamam de eles não haverem efetuado o pagamento pelo serviço auferido. É como se tivessem incorporado tais práticas como parte integrante de sua atividade profissional: sexo forçado, tudo bem, desde que pague.
Em outros momentos, são incapazes de identificar a violência presente em seus viver diários: De tão inerente, a violência chega a deixar de ser percebida, destaca o Diretor Vagner de Almeida no VIOLÊNCIA E CRIMES DE ÓDIO.
Um dos agentes sociais voluntários entrevistados comenta, impactado, que se dera conta de que elas, as travestis prostitutas, não fazem planos para o futuro; não possuem ou melhor, apagam, o registro do virá, do amanhã: as compras de alimento são feitas dia a dia e tudo o que elas querem é a possibilidade de estar vivas no dia seguinte.
Os aspectos mais humilhantes dessa nossa humana (digo humana porque frequente, não como atenuante) dificuldade diante da diferença são aqueles retratados na fala da empregada da funerária.
Ela nos relata o grau de apagamento de valores como empatia, solidariedade, fraternidade, verificados em profissionais da polícia e da defesa civil (bombeiros).
Eles se negam a tratar as vítimas e os cadáveres com a dignidade devida, exclusivamente por serem "viados", "bichinhas". Alguns corpos, de tão massacrados, precisam ser recolhidos com pás. Mas nem por isso - ou justamente por isso - os profissionais envolvidos na tarefa se recordam da humanidade a que aquele corpo, os seus restos, pertencem. Também não são capazes de se lembrar que, como eles, servidores públicos, as travestis de pista também tem quem lhes estime, se preocupe e pranteie a sua morte.
A desqualificação desferida às travestis em vida as segue além-morte - seja pelos bombeiros, seja pelo pessoal do Instituto Médico Legal. A relação desses servidores com os corpos é de criminoso aviltamento. Como se fora um amontoado de lixo pútrido, assim é procedido o recolhimento do cadáver vitimado pela bárbara e diária homofobia. No mesmo estado em que são recolhidos são tambem depositados nos caixões - nenhuma necrópsia, geladeira, nenhum preparo.
Impossível terminar de assistir a esses documentários sem pensar que, de certa maneira, essa mesma alienação nos acomete.
Também nós nos deixamos ficar indiferentes, aceitando como da ordem do imutável a contumácia dessas humilhações, terror e assassinatos macabros.
Quantas mais, travestis, gays, lésbicas - pobres, negras, anônimas -, precisarão ser trucidadas para que tomemos em nossas mãos a determinação de dar um basta nessa realidade?
Como é possível deixar-nos ficar a apenas contabilizar essas mortes do conforto de nossas casas, através de nossos computadores, principalmente agora, que uma nova onda de Caça às Bichas vem se instalando?
3 comentários:
Olá Rita, achei lindo o seu texto!
Gostaria de acrescentar somente que é importante não esquecer as formas de ação solidária e protagonismo já existentes entre as próprias travestis da Baixada Fluminense. Fiz umas entrevistas com travestis da Baixada, e apesar do grau da violência fiquei impressionado pelas conquistas que umas travestis conseguiram com relação a ser respeitadas nas suas comunidades, a criar redes sociais e a fazer articulações políticas. Ao meu ver, se não dermos conta dessas formas de protagonismo vamos correr risco de repetir formas de exclusão e invisibilação que queremos combater. Eu vi Basta um Dia e achei muito importante que o filme vai mostrando formas de violência absurdas e ao mesmo tempo esquecidas. Mas na verdade, o próprio filme é um resultado de formas de solidariedade, visibilidade e protagonismo já existentes – pois suponho que o Vagner usou redes socias de travestis e gays para encontrar @s entrevistad@s. Essas redes socias não são representadas no filme. As pessoas aparecem como indivíduos isolados. Me parece que o filme usa essa forma de representação para apontar a violência de forma mais clara e dramatizada. Então temos que ficar consciente de que neste sentido o que vemos é uma representação acentuada, e também existem outros aspectos na vida de travestis que vale a pena afirmar. Um forte abraço.
Fiquei emocinada com o seu texto! Eu não tinha muita noção de tal cenário, não sabia como tudo acontecia. Ainda não pude ver os vídeos por causa da minha conexão, mas assim que puder verei.
Continue escrevendo, seus textos são ótimos. =D
Ah, vou publicar no meu blog citando a fonte, tá? =)
Postar um comentário